HOJE CAMINHEI POR ESSE LADO

HOJE CAMINHEI POR ESSE LADO

Troquei de bolsa. É ,mas não foi uma boa troca : a minha caneta ficou lá esquecida naquele modelo maior que eu guardei, para usar uma bem pequena, já que iria a um lugar muito movimentado no centro da cidade ,onde os donos do alheio costumam também passear.

Propus-me a levar o essencial, mas não o fiz, porque esqueci a caneta. E agora, como iria registrar todas aquelas sensações esquisitas que sente um poeta ao revisitar lugares que alvoroçaram seus dias passados e longínquos (longes no calendário, mas em mim pertíssimos)?

A cada calçada , a cada loja,a cada igreja, turbilhão de lágrimas e risadas contidas se engalfinhavam em mim, umas querendo se sobrepor às outras.Não, não poderia parar aquele caminho efervescente para comprar a tal caneta, e ainda mais um bloquinho de papel que eu também não tinha.Não podia fazer isso comigo, não podia interromper aquela romântica e nostálgica percepção do local com um ato fútil de comprar...compraria sim,os doces que ali já tinha provado um dia ou alguma bugiganga , pulseirinha de hippie , porque isso fazia parte da história que eu revivia.Lembro que minha mãe , quando eu era adolescente, tinha muito medo que eu virasse hippie...(eu vivia com o braço cheio de pulseiras artesanais)

Por um lado ela estava certa , eu tinha verdadeira fascinação por aquele movimento. Por outro, ela estava completamente errada , eu era totalmente enquadrada no sistema e não conseguia nem aventar essa hipótese para mim...Mas que me demorava parada ,interrompendo todos os meus caminhos para admirar os hippies , ah isso eu fazia sim, adorava...viajava em suas cabeças...Pois é, hoje eles não estavam mais lá...

Em compensação, aquela mega confeitaria, restaurante, bar e tudo mais que se queira chamar continuava no mesmo lugar , com o mesmo nome....uma raridade no Brasil, uma raridade em Salvador...Comi aquela mesma torta de tapioca com recheio de leite condensado que costumava comer há mais de 30 anos...Que delícia, e com coca cola ; que não bebo e não gosto, mas hoje abri uma exceção, ela tinha gosto bom, gosto de poesia...

Entusiasmada entrei numa galeria e fui correndo para uma “boutique”(sim era assim que chamávamos as pequenas e chiques lojas de roupa feminina) em que eu desde a adolescência até a idade adulta comprava roupas e tinha crédito sem assinar um papel sequer...os cartões de crédito ainda não eram assim tão populares, pasmem , sou do tempo da nota promissória...

Bom mas lá nessa boutique tinha crédito livre, pegava e pagava quanto e quando queria...acho que era uma boa cliente, porque a dona do estabelecimento sempre insistia para eu levar mais ...

Quase confirmando que meu coração já antecipava , ela já não era a proprietária, tinha passado a loja para uma outra, que quase não ia lá , e por isso as portas estavam cerradas.

Um pouco desolada, mas ainda em clima de procura, atravessei a rua e entrei na igreja de São Pedro.Tive sorte, ainda peguei um restinho da missa, com direito a parabéns para os aniversariantes do dia e “derrama, senhor derrama...” Isso me deu um bem estar indescritível; nunca tinha dedicado esse ato a pessoas desconhecidas.é como se naquele momento eu me tivesse feito mais próxima de toda a humanidade!

Saí da igreja, e continuei a caminhada...Encontrei uma pessoa que não via há algum tempo, e a última vez que a tinha visto, ela estava passando por momentos difíceis e depressivos.Eis que agora me aparece sorridente, feliz da vida e com uma maturidade de vida, que me revelou em rápida conversa, admirável.

Ela me disse que estava muito bem desde que começou a frequentar o espiritismo, e que também estava colocando em prática tudo que lhes tinham ensinado meu pai e minha mãe, e que eles foram para ela também pai e mãe.Não precisa nem dizer que nessa hora as lágrimas ganharam a contenda para os sorrisos , lágrimas de verdadeira emoção...Lembrei o quanto me ensinaram também, o quanto fizeram diferença na minha vida, o quanto sou... por causa deles...Obrigada meus pais queridos, pais de, além de meus irmãos, de tantos outros filhos não biológicos.

Essa peregrinação à Avenida Sete de Setembro,, além de trazer-me recordações, fez-me pensar o quanto é bom caminhar sem pressa , sem saber quando e onde se quer chegar.Faz muito tempo que eu não fazia isso.Foi uma forma de renascimento,presente divino, que uma caneta, ou melhor a falta dela não conseguiu estragar...Como diz Frida Kahlo , com os olhos também se escreve...

Conceição Castro
Enviado por Conceição Castro em 28/04/2016
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