Odisséia no espaço

Nos anos 50 e 60, a aviação era puro romantismo e - não me perguntem porquê - os pilotos gostavam de mentir. Alguns mais, outros menos, mas a mentira - mesmo que sem maldade - permeava as conversas daqueles ases.

Comandante Maurício não era diferente e suas mentiras, de tão absurdas, marcaram a memória do nosso povo.

Ainda menino, eu me encantava ao vê-lo em impecável camisa de linho branco, calças jeans americanas e óculos Ray-ban. Quando comandante Maurício entrava na loja do meu pai, eu, atrás do balcão, ficava boquiaberto com seus relatos absurdos.

Ele afirmava ter pescado peixes grandes ao tirar rasantes com seu Cessna sobre o rio Uraricoera; uma vez matou uma onça pintada - quatro metros, da ponta do rabo ao focinho - batendo-lhe, de propósito, com a roda de seu teco-teco; e - a que mais me fazia sonhar - a vez em que o motor de seu avião parou em pleno ar e ele, sozinho, enfrentando forte ventania, abandonou a cabine, subiu no nariz do avião, acionou a hélice com as mãos, fez a máquina funcionar e aterrissou são e salvo.

Comandante Mauricio, apesar das mentiras, foi um desbravador de nosso Estado. Não havia lugar a que ele não chegasse com sua aeronave. Maurício era, também, um gozador de mão cheia. Vamos - com ele - à história do dia.

Quatro garimpeiros - Chico-piaçaba, Chico-preto, Mário-zabumba, e Zeca-peitinho – decidiram procurar ouro e diamantes na na Região de Puxa-faca e combinaram a viagem com Comandante Maurício. Este calculava o preço das passagens em equações que usavam distância, peso do passageiro e da bagagem.

De manhã cedinho, chegaram os contratantes. Maurício, ao lado de uma balança de plataforma e prancheta à mão, os aguardava. Pesou os passageiros e seus teréns e, enquanto arrumava os volumes na aeronave, notou - e fez que não viu - Mário-zabumba esconder dentro da avioneta uma pequena caixa. Aborrecido, o comandante resolveu pregar uma peça no malandro.

Na hora da partida, com todos entalados na quente aeronave, Maurício - sabendo do fascínio que sua profissão exercia sobre os seres normais - colocou o conjunto de fones e microfone apropriadamente e, em voz alta, falou:

- Alô Torre de Brasília...! Alô Torre de Brasília...! Comandante Maurício..., Boa Vista..., Rio Branco..., Brevê quatro-um-três-meia-quatro..., aeronave prefixo papa-tango-Havaí-bravo-eco... Sete e trinta e sete..., zulu..., saindo com destino à coordenada Havaí-bravo-204..., trinta e sete graus Greenwich..., mensagem codificada devaneio..., quatro adultos catalogados em relatório oficial.

Os passageiros nem imaginavam que não havia interlocutor para o rádio do piloto.

O avião decolou, sacolejou e cruzou as baixas nuvens. Estava em céu de brigadeiro; velocidade de cruzeiro, quando, de repente, começou a sacudir. O teço-teco subia, descia, pendia para direita, para a esquerda, acelerava e desacelerava... O comandante demonstrava – de propósito – nervosismo.

Maurício mexeu nos botões, puxou e empurrou o manche, pisou e aliviou os pedais, olhou pra cima, olhou pros lados... Os quatro garimpeiros, com medo, estavam mudos. Em seguida, o comandante olhou para trás, encarou Mário-zabumba e falou:

- Excesso de peso...

Mário-zabumba, baixou os olhos, e pensou: “Não é possível que aquela caixinha esteja causando todo este problema...”

Maurício encarou seus passageiros e foi mais incisivo:

- Isso é excesso de peso... Não é possível... Eu tive o cuidado de controlar tudo... Anotei os volumes que passaram pela balança... Somado ao combustível, nós decolamos dentro do limite suportado por este avião... Mas acho que estamos com excesso de peso... Nós vamos cair... – E encarando, mais uma vez, Mário-zabumba – Será que ninguém deixou de pesar alguma coisa?

Mário-zabumba, medrosa e envergonhadamente, abaixou-se, apanhou a pequena caixa que tinha escondido sob o assento, dirigiu-a ao piloto e falou:

- Comandante, eu esqueci de passar esta caixinha pela balança. Não acredito que duas latas de goiabada, um queijo e meia rapadura possam provocar acidente...

Maurício tomou-lhe o pacote das mãos, atirou-o pela janela e, naquele instante, como por milagre, a aeronave estabilizou e seguiu sem maiores problemas.

No destino - com passageiros e bagagens desembarcados - Maurício tomou um longo trago de sua garrafinha de uísque, encarou os garimpeiros e desabafou cinicamente:

- Tão vendo? Se eu não fosse experiente e soubesse ler os instrumentos, nós não estaríamos conversando aqui no Puxa-faca.

e-mail: zepinheiro1@ibest.com.br

Aroldo Pinheiro
Enviado por Aroldo Pinheiro em 12/07/2007
Código do texto: T562527