O chamado do abismo (Adaptação poética do conto "A planície e o Abismo" de Rubem Alves)

Um dia eu parei de planejar o sucesso, o futuro
cessei os lamentos pelos fracassos, o passado
e respirei fundo diante da única questão importante:
como existir plenamente no presente?

Deixei de contar com o que existe fora
e, diante da encruzilhada,
soube que o caminho a ser escolhido seria, sempre, o outro
o que dava calafrios e gelava a espinha.

Descobri que só coragem e desejo não bastariam
que é preciso disciplina e perseverança;
que é solitário, sempre,
o caminho de volta para a casa da alma.

Retirei-me das trilhas cheias de gente e burburinho
que escondem o medo e o silêncio do coração
dos que cantam e dançam – e estudam e trabalham, para esquecer de si.
E me pus a trilhar os caminhos que foram abandonados por todos.

Foi preciso desenvolver um certo gosto pelo risco, e a fé
em cada sentido, em cada músculo e visão;
saber que as emoções dos caminhos planos são planas;
que as emoções dos caminhos fáceis são fáceis – e breves.
Percebi que o medo do abismo era o medo do que eu não sabia de mim
e que todo sofrimento consiste em rejeitar esse conhecimento;
que a doença é recriar outro conhecimento, artificial,
e viver outra vida, no esquecimento da própria alma.

Aprendi que para voar como as borboletas
é preciso primeiro desenvolver
o gosto pela liberdade dos cavalos selvagens,
o espírito gregário dos lobos,
a flexibilidade dos camaleões,
a consciência comunitária das abelhas,
a disposição para morrer e nascer de novo das sementes.

Foi aterrorizante perceber que nada eu poderia levar nessa jornada
além da determinação em cumpri-la,
pois na caminhada fui me perdendo de todos os sons conhecidos
todos os cheiros familiares, todas as paisagens já vistas.

Durante a caminhada pude compreender
em quantos momentos
toquei o Berimbau da Vida - estiquei o Amor com o arco da Morte,
e o quanto isso me salvou do esquecimento de mim
e me manteve acordada.

Pude ver todas as vezes em que produzi perfeição
com os restos da destruição.
E multipliquei os dons
a partir das dores.
E aprendi a cultivar a compaixão
através dos erros
E a produzir abundância
a partir das sementes lançadas pela privação.

E, pude, então pela primeira vez em toda a minha vida,
estarrecida e encantada,
sentir um amor tão genuíno por mim,
que nunca suspeitei poder sentir.
Fátima Castanheira
Enviado por Fátima Castanheira em 07/05/2016
Reeditado em 17/09/2016
Código do texto: T5628467
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.