Brasileiro Puro

As palavras do escritor Luis Ruffato, proferidas na conferência de abertura da Feira do Livro de Frankfurt, em 2013, em que o Brasil foi o país homenageado, apresentam um panorama de nosso país. O literato situa e, ao mesmo tempo, chama para o compromisso com a cultura que nos constitui (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/10/1353517-escritor-luiz-ruffato-diz-em-frankfurt-que-brasil-e-pais-da-impunidade-e-intolerancia.shtml).

Uma passagem de seu discurso evoca, substancialmente, àquela condição. Salienta: “se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas - ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos”. Lugar da mulher, historicamente, consagrado e, atualmente, encontra outras facetas como dos dados de violência entre homens e mulheres.

Há alguns dias atrás escutei o termo “brasileiro puro”. Minha respiração ficou suspensa. Os atributos desta categoria seria o de desleixado, não se preocupa com o futuro e imediatista no seu prazer, portanto, o homem do gozo, diferentemente do europeu. Foi uma situação delicada, tanto no que pode ser um ataque aos meus princípios de exercício constante com a xenofobia que nos habita, como no início de um árduo trabalho de apostar que aquele homem redimensione sua construção imaginária. Sem saber, atacava-me a mim, eu, brasileira pura. Eu que, certa vez, buscando resolver um dos maiores desconfortos diante da pergunta: “Qual tua origem?”, explicava-me, numa árdua sessão de análise, minhas inúmeras descendências legítimas e ilegítimas, enquanto minha analista, uma brasileira-judia, numa sonoridade tão distinta da do grito do Ipiranga, como quem diz, porque você se conflita com o óbvio, respondeu-me: “Brasileira”. Uma Brasileira Pura. Origem descoberta após quatro décadas de existência.

Provavelmente, por ter vivido tal existência no quesito “origem”, não recebi as palavras daquele homem como um legítimo ataque pessoal, mas não sem um grande desconforto. Não lhe respondi desde um confronto com nossas origens: a dele, a minha, a nossa. Ele, trabalhador, pai de família, que luta por um reconhecimento de seu trabalho, nada mais é do que porta-voz de uma cultura tão bem descrita por Rufatto. Este literato filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto.

Aquele homem que concebia as faces de um “brasileiro puro” certamente, ainda, desconhece-se passivo de seu próprio discurso. Assujeitado crê que, uma suposta descendência europeia, possa lhe salvar de uma cultura devastadora impregnada por um capitalismo selvagem. Quando enuncia sua desbrasilidade pouco sabe que é filho da violência de sua descendência. Que sua condição europeia adveio de cruzamentos bárbaros – que somos todos nós, responsáveis. Talvez, seu enunciado nada mais seja do que uma vingança à sua própria violência constitutiva. Os “ódios” que acumulamos sem sabê-los.

Se uma das direções éticas de uma vida é possibilitar que possamos ser agentes do próprio discurso, desassujeitando-se, colocando o eu para fora de si, um dos caminhos é confrontar-se com nossas origens e as tantas facetas imaginárias que a compõem. Reconfigurações de um brasileiro puro. Puro de raças. Puro de dignidade em relação ao seu trabalho. Puro de honradez com o compromisso de vida. Puro de desejo na vida. Miscigenadamente, puro. Tolerantes com nossa miscigenação e intolerantes com tantas violências que produzem a barbárie, devastando um compromisso com nosso bem maior: a dignidade com nosso compromisso, cotidiano, com a vida própria que também é do Outro.