caminhando de mãos dadas

Morador de rua; o sarcástico deboche do capitalismo.

CAMINHANDO NA LIBERDADE! Avenida...Liberdade

Estávamos em pleno Outono, mas os dias ainda se apresentavam quase sem nuvens e o céu parecia brilhar com mais esplendor. Muitos reclamavam do calor sufocante de dias atrás, da baixa umidade relativa do ar, no bar e no lar, como se fosse o Verão. Eu disse:

Vocês verão que esta mudança de estação fora de tempo e do tempo... É pior que inverno, é inferno!

Mas, no dia seguinte, estranhamente e apocalíptica mente, amanhecera com um frio de Inverno fora de hora, um vento rodopiando saias e arrebatando pernas e voando pensamentos, na magnificência de algumas jovens senhoras de corpos exuberantes; deixavam que os homens passantes dessem asas à imaginação...

Naturalmente chamava a atenção, na avenida em que caminhávamos com os nossos passos; passados, presentes e em busca de algum futuro.

Em uma das esquinas a placa dizia: Avenida Liberdade. Avenida; entendi. Liberdade; desentendi!

Alguém que passava parou-me e perguntou: “Onde fica o largo da Misericórdia”? Respondi com toda atenção:

“Veja, não fica muito longe”. E fui ponteando com a mão. E ele: – Mas não é do outro lado?

– Não, do outro lado é a Estação Paraíso. E daí, respondeu-me:

“obrigado, é que ainda preciso ir até a Consolação”... Pagar os meus pecados para voltar ao Paraíso.

Fiquei abismado e desentendido.

Loucos são poucos, são muitos, São nada, são quase nada!

Talvez queira ir para o Largo dos Aflitos...

Liberdade fez pensar outros tempos, não tão remotos, da Ditadura Militar.

Quando vieram à memória algumas conversas com os colegas hoje distantes:

“liberdade não temos, ditadura é o que tememos, vamos para a Estação liberdade”!

Ali estávamos agora sem Ditadura e com uma acanhada Liberdade! Mas, o caminhar na Avenida Liberdade era recordar o presente no passado e sem futuro, é o que sentíamos nos passos dados de cada passante, passando, pássaros, passados a passos largos apressados ou não.

Naquela avenida, como em tantas outras naquela e daquela cidade, havia tantas outras pessoas abetumadas procurando uma sombra.

Era um vaivém de rostos, pernas e vozes, e deu para ouvir, num relance do comércio e também de algumas vozes femininas paradas nas esquinas, que pediam quase num lamento: Vem!

O corpo na vitrine chamava a atenção.

Em plena Avenida Liberdade e em algumas esquinas, algumas meninas-moças à espera de alguém que pagasse o preço de terem ficado mulheres envelhecidas, na falta de compreensão dos mistérios do ser.

E sem saber pediam: Vem!

Vem! Elas nunca souberam o que era o livro; página por página, seria um romance censurado. O verbo Educar nunca conjugado. Elas nem sabem se cometeu algum romance, se irão ter alguma chance, se os homens que por lá singravam todos os dias, passavam para quê?

Quem sabe queriam enlouquecer, se haviam sido vacinados ou se estariam no recôndito de algum cio venéreo!

Se o comércio da droga, o preço do aluguel do quarto no prédio, do tédio, da camisinha e do corpo, estava tudo somado no lucro, ou descontado, na agonia de alguma mais-valia.

No vaivém do abrir os zíperes; fechavam as esperanças de alguma dignidade.

Em troca de algumas poucas moedas, às vezes, se carregam nas veias as venéreas angustias do sofrer.

Enfiam-se no seu túnel, algumas indesejadas gotas de espermas, contaminados de ódio e carregam alguma gestação de algum búzio fora de tempo e sem tempo.

Elas, naquelas esquinas, ofereciam fantasias: Vem!

Suas realidades eram muito cruas e nuas naquela Avenida anotada e moldada, na placa a palavra: Liberdade!

Em uma das lojas de venda de discos, CDs tocava em alto som.

“-Não me deixe só tenho medo do escuro, tenho medo do inseguro dos fantasmas da minha voz”. Vanessa da Mata

E nas mudanças dos tempos precisamos estar atentos para não perdermos a embarcação nem nos deixarmos atormentar.

Poetas, cantores, artistas repentistas, seres pensantes não se amarrem em nenhum barbante; nem se deixem dar laço e nem o nó cego, venham e desenhem um poema, enfeitem as esquinas de nenhuma menina sem eira nem beira, no rosto marcado de lábios sonhados. Diante da inquietação ou irascibilidade.

Quebrem o espelho, pintem os lábios vermelhos e goste dos sonhos sonhados.

O que mais interessa na pressa de correr parado no mesmo lugar? Sem mudar?

Sinta-se, toque-se, olhe-se. O olho não quer ver?

Amiga não pode ser um laço sem nó.

Adocica sem ter passado mel.

O perigo é ver-se refletida em alguma exposição letífera de algum corpo para liquidação no mercado do consumo.

Aventura é não encafifar nem se moldar a nenhum esquema pré-estabelecido.

No escurecer das nuvens, fez-se um anoitecer dentro de mim. Assustei-me.

De repente uma ventania impetuosa assoprando e levando tudo, até meus pensamentos perderam o rumo e o prumo no meu equilíbrio. Já nem sei se é: são ou insano.

O trovejar arrebata minha sanidade, transporto-me para um caramujo, para fugir do frio siberiano, que já nem sei o que pensava ser.

E continuava a caminhar, nos passos que fui andando, fui tropicando nas confusões das injustiças, tive cólica de raiva e algumas congestões de indignação e outras de frustração.

Tomei um comprimido de oração para não perder o rumo de onde caminhava.

Eram pessoas transfiguradas de estresse e desilusão, outras tantas vivendo ultrajadas de ignomínia, suas revoltas e violências contidas estavam por um fio, “qualquer pisada no pé” era o risco, que corríamos, de sermos, esbofeteados por alguém mais estressado até os quintos dos infernos.

Naquele corre-corre, do ganhar o pão; e caminhando por aquela avenida por ironia chamada Liberdade.

Oh Liberdade, onde andas que te desconheço?

Liberdade abre as asas sobre nós deve ser coisa de Hino Nacional.

Eu vi, eu li e reli, num dos muros em letras garrafais:

“Revolução e alimentação vegetariana”.

Meus pensamentos tilintaram de desentendimento, ainda mais que naquela avenida havia uma criança emborcada na posição uterina, tanto era o frio que sentia, aparentando uns cinco anos de idade, toda esfarrapada num sono da noite em pleno meio-dia. A magreza da criança era tanta que falar em alimentos é pensar nos salafrários que nos rouba até nossos salários e acusam imposto de renda!

Naquela geografia, os pensamentos eram os tormentos que sentia e confundia: a jovem mulher cujo corpo oferecia; o óvulo na espreita de algum desavisado esperma, na oferta de carências e misérias, somava com aquele menino, fruto do pecado social de cada dia no jogo da mais-valia.

Uma miséria de esbofetear a cara dos bens alinhados, e dos salafrários do congresso nacional.

E talvez, dos bem alimentados. Dos que tinham para onde ir, e para onde chegar, mesmo atrasados...

Os contrastes não param por ai.

Ao lado na avenida: Liberdade, várias Universidades privadas. Privadas?

Sim, estas que se instalaram após a ditadura Militar, cresceram com a política Neoliberal e cobram centenas de reais para dar uma formação de que até Deus dúvida, se servirá para alguma coisa.

Enquanto a miséria de valores cresce numa inflação maior que os cobrados nas mensalidades das ditas escolas mercantis.

Não bastasse a precariedade dos cursos, ou decerto por isso mesmo, os estudantes se formam (se é que se formam) praticamente sem saber os principais conceitos da área e, pior, desprovidos de qualquer recurso bibliográfico aos quais possam recorrer em momentos de dúvida.

Numa das esquinas, no abre e fecha o farol Vermelho!

Carros param e os grupos, em uníssono, juntam-se aos carros, como pedintes mendigos.

Fiquei triste e, indignado, escrevi estas palavras para me entender e me desentendi; mesmo assim repasso para papel:

Seria a mesma coisa que estes jovens que passam nos vestibulares de algumas universidades; eles calouros, ficam nas avenidas, se achando e se auto afirmando com pinturas no corpo, se degradando para mostrar que entraram numa destas universidades que não formam nem informam.

Talvez que a formosura humana, em seus efeitos sobre os sentidos, não seja outra coisa senão a magia do sexo, o próprio sexo que se tenha tornado visível na cara pintada para alguém notar.

As emoções tendem a se confundir com a beleza, ou com alguma necessidade premente do ser.

A beleza é uma mágica. Daí a insipidez da beleza perfeita.

Sabe naquela hora e até agora...

Não, não, mas naquele dia, naquela caminhada, caminhava com tantos presságios, cansado e estressado, que resolvi dar uma parada, dar um tempo, como se dá um tempo dês estressando...

Ir ao Sebo onde vende os livros usados e mais baratos com a possiblidade de ir-se na prateleira e fuçar em cada um, ao alcance das mãos, e poder ler, e assim esperar a leveza do tempo passar.

Fui procurando por algum autor ou mesmo um prefácio. Talvez comprar um livro?

Ou comprar coisa nenhuma, mas não tem como não comprar uma boa leitura.

O tempo passou será que o metrô já teria alguma vaga para eu entrar sem ser empurrado para dentro sem precisar dar passos? Resolvi ficar mais um pouco antes de continuar a caminhar.

Pequei o livro abri e fui lendo o prefácio, lendo e me interessando, resolvi compra-lo.

Continuei no meu caminhar e mais adiante sem estar atrasado, cheguei à estação SÉ do metrô, uma multidão para entrar nos vagões.

Todos corriam do tempo, ansiosos por andarem sempre atrasados e atrasando por estarem contra o tempo. Assustados, todos estavam estáticos e a sós, querendo ocupar algum espaço, mesmo que sendo fatídico, para chegar a lugar algum. Amassaram uma orquídea das mãos de uma senhora que a abraçara em desespero e cuidados, perdidos no curto espaço até para respirar o pouco ar ventilado, na quentura dos corpos suados, cansados da mais-valia sugadora de cada mão de obra do trabalhador.

Trabalha, trabalha, sem tempo para pensar que a exploração não dá redenção nem vida eterna.

No trabalho sem prazer e sem sorriso!

Marx já havia, estudado, publicado, profetizado essa ladainha e poucos sabem entendê-la, compreendê-la.

O metrô lotado, a cara do povo amarrada, amordaçada, e de esbarrão em esbarrão cada um chega a algum lugar mesmo com o trânsito caótico, o chegar atrasado será sempre o possível. Em cada vagão superlotado não se pode nem respirar fundo, peidar então... É um crime contra os pulmões alheios.

E algum sujeito indeterminado, sem nenhum predicativo verbal, nominal ou animal havia dês purificado o ar aumentando o fedor, não bastava os braços levantados... sem que se pudesse nem abaixar as mãos para não encostar em nenhum corpo menos avisado!

Ninguém consegue esconder a dor o amargor de suas fisionomias o cansaço é a revolta camuflada de cada passageiro, massacrados no corre-corre no ganhar o pão e do pouco caso do transporte público sem falar nas roubalheiras que nunca se investigam os desvios de dinheiro público.

Encontrei anelos de não ser e de estar naquele espaço fétido de razão. Público?

Quando alguém empurra outro alguém com brutalidade no metrô, ocorre um derramamento de adrenalina na sua corrente sanguínea, a pressão sobe para dar mais força aos músculos, as batidas cardíacas se aceleram.

A violência entorna raízes na impotência.

O estresse está sempre a um fio da violência.

E nos tempos modernos é o que mais se vive e sente, é a revolta e a indignação.

Estamos todos a um passo de explodir numa violência generalizada, porque as pessoas não podem guardar estas raivas em formas de ansiedade a vida toda, ou podem?

É um dom ou estigma esperamos para absorver o acontecimento em nossa consciência e depois decidir qual será a melhor resposta. Isso nos dá a cultura, mas também nos dá a neurose.

Há povo mais neurótico do que os que vivem nos grandes centros urbanos?

Agora, já em casa, resolvi que deveria iniciar a leitura, daquele livro comprado no sebo da Avenida Liberdade.

Tempo favorável, pois estava ligeiramente calmo, liguei o som nestas músicas sem letra, em que se misturam o violino, violão, piano e sax.

Á medida que fui lendo e me envolvendo no enredo, a leitura foi tomando conta de mim, num comprometimento tão intimo que a agitação acabou por derrotar a calma. A leitura da boa literatura é uma coisa boa, muito boa.

É algo profundo, edifica e fortalece o coração do leitor é um ensinamento edificante.

A pessoa que escrevera o livro estava falando comigo, estava me contando algo que não sabia.

Fechei o livro e fiquei esperando um momento breve para continuar aquelas confidências.

Quando terminei a leitura, guardei o livro.

Alguém queria ler, emprestei; não me devolvera. Fiquei chateado porque aquele livro tornou-se um amigo e me fez entender um pouquinho mais, as minhas misérias e as minhas grandezas.

Cada livro que lemos, aprendemos coisas novas, e daí, vai se abrindo diante do leitor um mundo de coisas que antes, ignorava e desconhecia.

No outro dia, estava indo para o trabalho, quando fui atacado inesperadamente por um bando de pensamentos, que alertavam que o dia além de intenso seria muito desgastante.

E que nem só de trabalho vive o homem, pensava. Pensava?

Nesta relação de trabalho da mais-valia, a exploração para ser completa necessita tudo calado, conformado e pouca informação fidedigna e muita programação ideológica.

Não deixar pensar no real, viver da fantasia, sem educação, sem participação cultural, sob a aura da lógica capitalista, ou seja, mãos de obra disponível para o controle do mercado e dos salários.

do livro reflexao em forma de oração (irineu)