MASCATES

A palavra Mascate provém da cidade que é capital do Sultanato de Omã, que em algum tempo já foi parte de Portugal. Mascate é uma linda cidade localizada ao lado do estreito de Ormuz e do Golfo Pérsico. A tradição comercial dessa região é tão antiga como a humanidade. Aqui no Brasil eram chamados de mascates, aqueles comerciantes que, em geral, eram de origem semítica: sírios, libaneses, persas e egípcios. Mas, para todos os efeitos, ele era "turco", pelo menos, na voz popular. A origem disso tudo é que a Turquia era o único país que faz parte também do “oriente próximo” que mantinha relações estreitas com o Brasil na época do pós-guerra, desde o início do Século XX. Os vizinhos da Turquia aproveitavam-se desse fato para conseguirem passaportes turcos e facilitar a viagem e entrada no Brasil. O mascate era uma figura benquista entre o povo que, aproveitava sua boa vontade para fazer a "gozação por cima dele". O "turco" não se importava e logo estava chamando todos os conhecidos com a costumeira ternura do compadre (ou gumbadre), como eles diziam. Em alguns lugares o chamavam de cometa, pois assim como aqueles, não tinham um tempo acertado para a próxima visita. Alguns também os chamavam de capadócios (Capadócia é uma região da Turquia). No início do Século XX, na minha região natal, os mascates eram parte de uma comitiva de quatro ou cinco burros (um de sela; outro de arrieiro, outro de cozinheiro, um que era “reserva ou sobreaviso”, outro que traziam os trens da cozinha e os outros que traziam encomendas e novidades). Nessa época, o mascate “arranchava” num lugar e, enquanto os animais descansavam, ele levava uma mala com amostras do conteúdo que a comitiva tinha, tentando vender ao povo.

Anos 1950: já o Seu Valdemar, mascate, era mais modesto: viajava sozinho, a pé, sem comitiva.

Enquanto isso, lá na fazenda....

Lá vem Seu Valdemar (cujo nome original era Ahmed), mascate, tendo as costas o enorme baú com divisões e gavetas, preso ao corpo por uma faixa larga de couro á tiracolo. Enfiado num dos braços, traz o banco portátil, sobre o qual põe o baú para abri-lo e exibir a mercadoria. Presa por uma larga tira de couro e imensa fivela, Seu Valdemar traz mais uma mala: é a mala dos pedidos: uma peça especial de tecido para uma noiva que vai se casar breve; um retrato reproduzido a partir de uma foto 3x4, de um esposo amantíssimo que faleceu; ou de um padrinho que também já partiu fora do combinado; uma sinhaninha ou renda especial para roupa íntima de uma viúva ou noiva fresca.

Traz na outra mão dois pedaços de madeira ligados por um couro; sacudindo a peça, os paus se entrechocam e fazem o barulho característico do mascate que se aproxima: é a mesma matraca que se utiliza nas rezas às almas, nas noites e madrugadas da semana santa. Estão no baú alguns cortes de fazenda muito ao gosto das moçoilas casadoiras e todos os artigos de lojas de armarinhos (ponto russo, rendinhas, fitinhas, elásticos, sabonetes, anéis e brincos baratos, cadarços, botões, colchetes, alfinetes, agulhas, carretéis, retroses, meadas, dedais, pentes e escovas de cabelo). Além disso, o Seu Valdemar traz bugigangas, vidrilhos, espelhinhos, bonequinhas e peças de toucador, como almofadinhas para ruge, batons, brilhantinas, óleos para cabelo e talcos perfumados. Ele ainda oferece-se para trazer um corte de brim-aço, um corte de linho ou casimira, ou qualquer outra necessidade do freguês, sem que ele tenha a necessidade de ir à cidade, tão longe e sem um mínimo de possibilidade de transporte. E o Seu Valdemar vem de longe; lá do estradão entre Cravinhos e São Simão, a pé, até as fazendas de café, seu destino final; cerca de quinze quilômetros e três horas de caminhada. Nas vendas, o Seu Valdemar aceitava como pagamento quase tudo que lhe era oferecido. Barganhava com quem podia, recebia dinheiro de quem o possuía; e aceitava o escambo também! Dos objetos e pequenos animais que recebia em pagamento, fazia moeda de troca, pois em algumas casas não se interessavam pela “modernagem”; mas uma galinha, uma leitoa, alguns queijos se lhes interessavam.

Vivi na fazenda até os treze anos de idade, não houve sequer um ano em que o Seu Valdemar não passasse por lá. Muitas vezes, espertamente e para garantir o almoço de graça, ele guardava as melhores promoções para minha casa, se bem que nem sempre o negócio era fechado.

Lembro-me eu certa vez, uma rádio de Ribeirão Preto anunciou, por diversas vezes, que um criminoso havia fugido da cadeia de São Simão. A rádio informava de que ele era sanguinário e malvado. Já havia matado velhos e crianças e estuprado donzelas e mulheres de todas as idades. A rádio anunciava também que ele fora visto sozinho, caminhando numa estrada em direção a Cravinhos. Que todos deveriam se precaver e etc. Como praxe, as mulheres das fazendas levam o almoço dos maridos no eito, pontualmente às nove horas. Nesse dia, mais que qualquer outro, elas formaram uma enorme “procissão”, pois nenhuma tinha coragem de seguir as estradas que levavam ao eito, por medo de encontrarem o assassino que fugiu da cadeia.

Ocorre que nesse mesmo dia, o Seu Valdemar chegou para sua habitual visita de comércio. Quando chegou ao carreador principal, dentre o cafezal, quase desiste pelo cansaço e por o carreador seguir morro acima, com curvas de nível de trechos em trechos, ele nem sequer via a parte mais acima. E o sol fustigando na cabeça!

Por sua vez, as mulheres que se dirigiam ao eito começavam, a descer o mesmo carreador em que estava o Seu Valdemar. No primeiro trecho, não se viram; no segundo, o Seu Valdemar as viu, no terceiro elas viram o Seu Valdemar; no quarto, tanto um como outro se viram. Ficaram estáticos por um minuto: dona Izabelona, mais decidida, afirmou que aquele deveria ser o assassino fugidio. Já o Seu Valdemar pensava no esforço extra que essas mulheres tinham, por terem que levar ao eito a comida que passaram a fazer desde a madrugada, além dos outros afazeres da casa.

Então se deu o inesperado: as mulheres, aos gritos correram para dentro do cafezal, assustadíssimas! O Seu Valdemar, por crer que deveria haver algum perigo iminente, também fugiu para o lado, dentro do cafezal.

Passaram-se instantes: aos poucos, as mulheres foram voltando ao carreador, certo de que o assassino fugira com medo delas, como garantiu a dona Izabelona.

Seu Valdemar sondou o carreador. Viu que as mulheres já estavam andando normalmente; entrou de novo no carreador.

Novamente houve uma algaravia, uma confusão, muita gritaria.

- Me valha Nossa Senhora, gritou a comadre Nair, já se urinando de medo!

- Ai meu Deus, disseram a dona Izabelona e as outras em uníssono!

- Por Alá, disse o Seu Valdemar!

E, novamente as mulheres entraram no cafezal, tal como o Seu Valdemar.

Ocorre que, dessa vez, eles estavam mais próximos e o Seu Valdemar escutou as mulheres falarem que ele era um assassino!

Então, lá de trás do pé de café, o Seu Valdemar, o mascate, gritou:

- Senhoras; sou o mascate Seu Valdemar e não sou assassino! As malas que carrego são para transportar minhas mercadorias! Não precisam ter medo de mim!

E dito isso voltou ao carreador com suas malas e matraca, passou incólume pelas mulheres, partindo em direção à fazenda onde eu morava; e nem sequer olhou para trás!

Criado em 27/04/2016 - ACAS

ACAS
Enviado por ACAS em 04/06/2016
Reeditado em 28/12/2016
Código do texto: T5656937
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