Norilsk

Pois que o momento do pôr-do-sol, nesta cidade colossal é de ambíguo entendimento. Trata-se do pior e melhor que se pode acontecer ao morno salariado. Isto se deve ao fato de ter de entrar neste tropel que advêm de cotidiano semelhante, mas buscam todos, destinos diferentes em roteiros. E pode-se dizer que são os minutos mais esperados, pois é nesta intermitência que se encerra o expediente de cada um.

Logo é horário de pico. É hora de magote. É momento de metrô. São filas em terminais. E era à Barra Funda que estava nosso personagem. Como em todos os dias, relendo trechos de alguma obra que lhe preenchia o vazio que a atividade contínua proporciona ao espírito.

Lá chegando o trem, tomou-o. Desceria ao Pedro II. E conglutinou-se à parede de plástico ao lado direito, pois seria por este que sairia, como, não por ocasião, mas sim como procedia por todos os dias.

Regurgitava-se o trem e espremiam-se estas pessoas que sobrevivem à vivência por todos os santos dias. Poderia bastar, em sua conjuntura, estar em plena harmonia com seus impostos; isto ele não defraudava em seus pensamentos como milhares de anti-realidade, mas que transformam o labor em castigo, desde a queda de Adão.

Mas havia neste vivente comum e ordinário da cidade algum tipo de teor que o fazia enxergar certos aspectos e detalhes que fogem aos olhares dos demais. E foi ouvido quando uma voz feminina, bastante escrachada e impostora, jogou algo ao ar o que lhe chamou a atenção:

- O mais importante é pagar as contas.

Devo dizer que isto o interpelou bruscamente, mesmo que não fora uma oração dirigida à sua pessoa. Com modo que, se saísse dali deixando aquela frase solta e expansiva ao ar, a flutuar e pousar na concepção de quem a bem entende como lógica, estaria tornando o próprio raciocínio como débil, observando o defeito deste contexto.

- Minha amiga, – tomou-lhe a atenção, já se sentando à poltrona de plástico azul, reservada aos mais necessitados. – escutei algo que acabou de dizer.

- O que?

A mulher, totalmente desleixada e disforme de compostura com as roupas azuis e de brim, a luzes de tinta distribuídas aos cabelos que não se sabia a tonalidade natural e uma argola ao nariz pareceu não saber o que começava a se passar ali.

- Acabou de dizer algo sobre contas. Poderia me repetir?

A dona olhou para a colega, não menos surpresa e sarcasticamente sorridente, de novo lhe falou.

- Disse que o importante é pagar as contas!

- E por quê?

- Ora! Não pague para ver o que te passa.

- O que me passaria?

- Bem… Já vi que o senhor, moço, é desses que gosta de render assunto, por isso vou dizer de maneira mais específica: a privação de tudo! Energia elétrica, água, gás encanado, entretenimento... Tudo!

- Mas há um engano nisso.

- Qual?

- Como um débito lhe priva de tudo, se tudo não advém do débito?

Olharam-se estranhadas.

- Pois pode repetir?

- Deveria nos privar de todas as conveniências, se estas mesmas proviessem daquilo que falamos: o imposto.

- Quer dizer que tu não morre se não pagar as contas?

- Moça, isto não é possível ser dito de forma literal. A morte não é nada padrão; implica-se em duas cenas totalmente opostas, mas de mesmo fim: a paulatina e a repentina.

Novamente entreolharam-se de modo desconfiado e insciente.

- Para mim isso é grego! – Declarou a avantajada que se sentava ao lado.

- Pois bem, tentarei explicar: ontem houve sol?

- Sim!

- Hoje houve?

- Não!

- Mas como que não minha amiga?

- Hoje o dia esteve nublado moço! – Declarou rindo-se.

- Mas não digo as condições climáticas. Quero saber se houve o sol; saiba se não o tivesse havido, estaríamos em Norilsk, pois estamos em dezembro. Mas isso não vem ao caso. Houve dia e noite?

- Pois é claro!

- Então houve sol! E amanhã haverá?

- Haverá.

- Com isso podemos concluir que independente de como você acorde por todas as manhãs, o sol sempre estará lá, não?

- Sim!

- Pela indisposição, letargia, afoiteza ou aflição; tanto quanto solicitude, calmaria, paciência ou prazer, sempre que afastar as sedas da cortina verá um céu claro.

- Mas é claro que sim! E é muito bonito o que acabou de dizer.

- Pois bem minha moça, e saiba que quando disse sobre o dia nublado, facilitou na conclusão da minha metáfora. Não te importa como nasça o sol, pois este sempre irá irromper tal como é o ciclo. Mas o que deve ser tratado como prioridade é aquilo que se faz durante o período de luz.

- Concordo!

- Muito bom!

- O mesmo se aplica aos débitos mensais. É nosso dever saldar os impostos como cidadãos, porém da mesma maneira como o sol, também sempre lá estarão por todos os meses e anos até o final. Por isso a maior importância não deve ser arcá-los, mas o que conseguimos fazer de bom além desta obrigação.

Não houve palavras repentinas, apenas um olhar estupefato de ambas para com a face imparcial de nosso personagem. E talvez quando pensaram em algo a declarar para admiração, um senhor de boina e calças verdes, posto a um suéter gris lhe tocou ao ombro.

- E se estivermos em Norilsk de dezembro a janeiro?

- Seria o mesmo! Pois a noite polar dura de dezembro a janeiro, em contrapartida, de maio a junho o sol é incessante.

- Meu querido, vejo que defende a prática do bem acima de qualquer circunstância. Não é isso?

- Pois sim!

- Então pratique o bem e deixe este velho homem se sentar nesse banco que foi feito para quem tem minha idade.

E o nosso jovem levantou-se e com toda boa atitude e permitiu que o senhor se sentasse. Não há como dizer que não lhe houve uma faísca de vexame nesta ocasião.

Pois chegamos ao Pedro II e ele se foi.

Vinícius Thadeu
Enviado por Vinícius Thadeu em 04/06/2016
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