196 – A CARTA...

Um velho amigo tendo terminado os seus estudos na universidade, recém casado, agora de mudança para bem longe me presenteou com vários livros descartados da sua biblioteca, com a expressa recomendação que cuidasse bem deles, que os amasse o tanto quanto amava os meus livros, presente que recebi alegremente, e cuidadosamente no decorrer da semana os fui colocando em seus devidos lugares, e em todos anotei a data da doação e por quem fora doado...

Entre os livros doados havia um livro de Homero, a Ilíada, notei que o mesmo carregava no seu interior um marcador de páginas volumoso, estranho, e paulatinamente fui observando os detalhes daquele objeto, que não se tratava de um marcador de páginas, mas sim de uma carta que estampava no se exterior vários decalques de flores, exalava um doce e suave perfume, também em sua parte externa havia uma cálida dedicatória, “Ao meu amor” ...

Durante alguns minutos que mais me pareceram uma eternidade, fiquei com aquela carta misteriosa em minhas mãos, eu me ardia em desejos de ver e ler o seu conteúdo, que segredos guardava, esperanças perdidas, sonhos destruídos com mudança do meu amigo, pensei, mas por mais que a tentação me instigasse, por mais que a curiosidade avantajasse dentro de mim, senti constrangido em lê-la, e cautelosamente a guardei no mesmo local em meio às paginas do referido livro.

Nos dias que se sucederam todo meu ser se ardia em curiosidade sobre o teor daquela carta, mil coisas passei a imaginar, seria a carta de uma namorada narrando toda a sua tristeza pela separação, ou seria a despedida de uma grande amiga desejando felicidades e sucesso em sua nova morada, mas, e aquela dedicatória “ Ao meu amor”...

Então a carta não seria de uma amiga, quem sabe poderia ser até as despedidas de uma amante lamentando o acontecido, relembrando das tórridas noites que juntos vivenciaram, meus devaneios estavam sendo dominados pela ansiedade e pela curiosidade em descobrir que segredos aquela bendita carta guardava...

Assim os dias foram passando e a tormenta mais e mais avolumava a minha curiosidade...

E a carta esteve várias vezes em minhas mãos, e no meu íntimo um combate feroz desenrolava, me lembrei de Hamlet, “ Ler ou não ler”... Por fim prevaleceu o não ler, me conformei, me convenci que aquela seria a minha melhor atitude, que respeitasse a intimidade do meu amigo...

E assim se passaram várias meses, foi quando o amigo que me presenteou com aqueles livros me telefonou dizendo que estava de volta à nossa cidade para encerrar alguns negócios que dependiam da sua presença e que me visitaria naquela tarde.

Recepcionei-o de braços abertos, gostava e gosto muito da sua maneira de ser, honesto, trabalhador, que leva coisas a sério, mas ao me lembrar daquela misteriosa carta tive uma passageira dúvida sobre a sua sinceridade, e a conversa logo debandou para a literatura foi quando ele me perguntou sobre os livros presenteados e se eu os havia lido, ao que respondi que por falta de tempo não havia sequer folheados, e que da maneira que os recebi foram guardados, e na estante eu lhe mostrei onde se encontravam, e ele avidamente foi folheando-os como que procurasse um valioso tesouro perdido entre as suas páginas, mas quando ele se deparou com o livro de Homero, a “ Ilíada ” seus olhos brilharam, sua respiração tremulou, penso que até o seu coração descompassou, vi que finalmente ele havia encontrado o que tanto procurava, o que na certa estava lhe causando tamanha preocupação, e que tanto estava atormentando a sua alma, aquele livro parecia uma brasa viva em suas mãos, queimava, e que a minha presença na certa estava impedindo-o de apossar do seu tão secreto tesouro, pensei, e com a desculpa de servir um cafezinho, pedi licença e fui até a cozinha deixando-o sozinho no recinto, quando voltei com o café ele já havia recolocado na estante o livro de Homero, parecia mais aliviado, mais leve, solto, voltou a antiga alegria que sempre estampava em seu rosto, sorveu o café, esticou a conversa sobre a sua situação em sua nova morada, sobre a sua família, também falei da minha família, e com um forte abraço se despediu sem antes exigir a minha promessa que o visitaria brevemente...

Assim que tive a certeza que ele havia partido corri até a estante, na afobação demorei para encontrar o livro de Homero, e não foi nenhuma surpresa para mim não encontrar a referida carta em meio à suas páginas...

Ele havia surrupiado, ou melhor, não surrupiou, a carta sempre fora uma propriedade sua, ele apenas recuperou aquilo que de direito lhe pertencia.

O tempo passou, mas nunca passou aquela imensa curiosidade que tive de ler o conteúdo daquela carta, mas por outro lado me sinto em paz com a minha consciência por não ter violado aquele segredo, me sinto confortável ao lembrar do meu amigo, sinto que valorizei e respeitei a nossa amizade...

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 09/06/2016
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