outono cinza

Hoje eu vi um poeta - desacreditado, dissimulando as mágoas, escrevendo poemas. Numa mesa velha, no canto da rústica casa, sobre uma cantoneira. Sua aparência desgastada, enrugada e esmorecida brilhava com uma intensidade incomum. Seu lápis grafite de cor preta, sua borracha amarelada e o seu pedaço de papel o circunscreviam num mundo apenas seu. Uma folha seca, já acinzentada, disposta sobre o livro ao lado, marcava os anos de sua solidão.

Seus poucos fios de cabelo, graúdos, embaraçados e oleosos, lembraram-me um ancião, um sábio ancião. Suas roupas, já desbotadas pelo efeito inexorável do tempo, transpareceram um mendigo. Seus pés descalços, escamosos e sujos, definiram-me um explorador de mangues. Seu nariz e bochechas coradas mais pareciam a maquilagem de um palhaço. Sua força espiritual, de longe percebida, caracterizava um herói.

Do lado de fora, a chuva. Misterioso resultado dos fenômenos naturais, mistura de gases, alternância de estados físicos, água. Triste, fria e pálida. E eu lá, molhado, quase enferrujado. Mas não me chegava o cansaço; observá-lo era como tirar fotografias de diversos ângulos, não deixando escapar o mínimo detalhe, captando a imagem em seu aspecto mais real possível. Eu queria mesmo era saber o conteúdo daqueles escritos, a essência ensurdecedora dos sons, a imagem inebriante das cores e a percepção tática das formas geométricas.

Sábias metáforas, tombadas frases e construções complexas. O rústico e o moderno; o calor e o frio. O mistério, a curiosidade, o desejo de ser e estar em qualquer lugar. Verdades e mentiras; contrastes. Povoados, habitantes, animais, paisagens. Universo só seu, exclusivo e único. Era seu e eu não havia de ter o mínimo direito de interferir.

Ser do meu mundo, mas habitante do meu outro mundo. Alheio ao real, figurante; atado ao ficto, protagonista. Desconhecido; amigo íntimo. Era ele e ele, só ele. Ali, quieto, absorto em suas idéias, pensamentos e crenças, delineando o meu outro mundo. Ansiedade em mim, rubor em minhas entranhas, desejo aparentemente insaciável.

Quando mais poderia viajar, ali, ou em qualquer outro lugar, finalmente encontrar o poeta da janela, da cantoneira ou do jardim da casa rústica, perdi o trem, perdi o avião, mas ficaram as asas da imaginação. Eu encontrei, então, outra folha acinzentada marcando a solidão.