"Barba ensopada de sangue"

Em algum momento da semana, do mês ou do ano, o homem terá de se encarar no espelho. Nenhum tipo de reflexão, apenas a simples constatação, seu visual hirsuto já não mais lhe agrada.

Pelo tamanho dos fios, um prestobarba não sobreviverá até o fim. Considera a tesoura de costura da avó, mas não se atreve. A imagem de Crocodilo Dundee fingindo se barbear com aquela faca para impressionar a mocinha lhe vem à lembrança. Mas por que diabos esses pelos crescem tão rápido? Será mesmo a testosterona o maior culpado? Como será que os romanos se barbeavam? Decide que não encarará aquilo sozinho. Sai apressado e se dirige, resoluto, até a barbearia. Nem bem dobra a esquina e seu telefone toca. Ao olhar a tela,chega a pensar, e se criassem um aplicativo aparador? Nenhum trabalho, só o download. Não, não deve ser possível, não nesta década,mas quem sabe na próxima? Atravessa a praça do BG. Chega à frente da loja e vê seu reflexo na porta de vidro. Fez o certo, pensa. Tem a impressão de ouvir as palavras do pai, "você fica, no mínimo, dez anos mais novo". Ao entrar se espanta em ver tantos homens. Nenhum com cara de pressa. Senta-se na poltrona imaginando quando será o próximo. O ritmo ali parece se associar a algum outro parâmetro que não o dos ponteiros. Tentou descobri-lo observando os gestos e palavras dos presentes. Demorou um bocado, mas percebeu a primeira pista quando um dos barbeiros, gesticulando com a navalha nas mãos, começou a narrar histórias de valentia ocorridas em sua cidade natal, no sertão do Piauí.

No inicio só alguns prestavam atenção, mas com o desenrolar da trama, o silêncio dos demais prevaleceu. O chamaram. Sentou-se mecanicamente, já que toda sua atenção estava agora presa nas palavras daquele barbeiro baixinho, com cara séria e ao mesmo tempo debochada. A cadeira se inclinou. Recebeu uma toalha quente no rosto. O calor, a textura e o cheiro do pano o fizeram relaxar mais rápido que um cafuné de mulher carinhosa. A história agora estava em seu cúmulo, à beira do impossível. O quê era o cinema 3D perto daquilo? Uma pipoquinha agora seria demais? Deixa pra lá. Voltemos à história. Jamais imaginou que houvesse tanta gente brava e destemida daquele jeito. Graças a Deus,pensou, nem todos os estados eram como aquele,senão o número de hospitais teria que ser triplicado. Sentiu a cadeira levantar. “Acabou, meu jovem! São dez reais.” Como assim, acabou? O Senhor me desculpe,mas não saio daqui até ouvir o fim desta história. “Rapaz, acredite, isso nunca terá fim. E uma coisa ainda lhe digo, a quantidade de mortos e feridos só não é ainda maior porque, graças à misericórdia divina, o nosso amigo ali hoje é evangélico.”

Humberto Brusadelli
Enviado por Humberto Brusadelli em 21/06/2016
Reeditado em 06/10/2018
Código do texto: T5674450
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