fim de noite

A noite está quase acabando e estou pior. Sinto que se aproxima mais um fim. Ando pensando num simbolismo grego de morte. Prometeu. Um martírio ao qual se é acometido tantas vezes na vida para um dia, quem sabe, chegar a um estado novo de contemplação. Mas ainda me resta um pouco de alegria, que vou sorvendo junto com este último gole de café já frio. Não consigo pensar simplesmente que amanhã é outro dia. Não cumpri nenhuma missão. E a esperança vem, pesando mais que um paquiderme. Estou sinalizando o início da angústia, dessa dor de respirar, do cansaço das coisas do dia, dos papéis, de tudo que se cala, quando queríamos falar. Hoje não entendo a falsa inspiração das coisas banais. A janela cospe uma lufada que me assalta, vem de um lugar qualquer metafísico e me revela desesperos maiores, o desespero humano, qualquer coisa de filosofia existencialista, sei lá. Mas o clarão da TV me distrai. E todo domingo regurgita o fim na forma de novos inícios redundantes.

É preciso se reciclar - diz um psicanalista empertigado na TV - para garantir um relacionamento produtivo. Trata-se de um programa de entrevista, que assisto sem nenhum entusiasmo. Nele um homem e uma mulher, ambos autores de livros-manuais, apresentam estratégias para solucionar o problema da auto-estima para quem está sozinho. É verdade, hoje é dia dos namorados. E a publicidade faz sua fézinha em cima do nosso vazio. Faz sentido. Bem, isso me faz pensar em quanto tempo devo estar sozinha. Hum, não sei, acho que parei de contar junto com os novembros, equinócios e solstícios. Pausa para auto-análise. Aqui estou eu, reduzida a um gato preguiçoso estirado na cama, ansioso por comida, água e borboletas. Haja vista que, por hora, as borboletas bastariam. E no meio desse imbróglio-ocioso-incessante que é a minha vida, eis que ouço - já tão desconsolada - que a generosidade é um demérito para os relacionamentos atuais. De acordo com esta teoria, “o egoísta consegue gozar melhor os benefícios que o mundo pode oferecer, vive mais plenamente e não acumula as mágoas”. E agora?! Logo eu, que considerava esta (a generosidade) uma das qualidades mais admiráveis numa pessoa. Bem, não entendo muito de psicanálise para compreender o que este sujeito quis dizer. Sei que Freud foi o pai, Reich era um freudiano-marxistas muito libertário para os padrões da época e os de hoje, que Jung decifrava sonhos com mandalas, enfim. Melanie Klein, Lacan, tentei buscar num nome a causa do meu estado de solteirice neste infortunado dia.

Fiquei sabendo espantada que, “viável” mesmo, é o relacionamento que obedece a um padrão de comportamento. Não, não tem nada a ver com tolas confissões buarquianas em bar de esquina com cerveja e vinho tinto como eu pensava. E a bionergia então?! Burra, então é por isso, eu estava fazendo tudo errado. Continua a entrevista. Baseado em estudos e amostragens de universidades renomadas, sabe-se que é possível hoje traçar estratégias para encontrar um alguém que se adapte plenamente às suas necessidades enquanto INDIVÍDUO. Mas vem cá, amor tá valendo? Acho que não tem mais lugar para isso, é coisa já ultrapassada pela informática e pela internet. Olha só como sou provinciana.

Estamos lidando agora com pseudo-neuroses televisivas e seus desdobramentos, o mercado de consumo suprimiu o lirismo e a ludicidade para dar lugar a razão sem sensibilidade, muito mais adaptada às novas relações no mercado de trabalho no contexto da globalização. Muito bem, então de posse destas valiosíssimas informações da ciência devo correr ao single bar mais próximo munido de papeleta e palm-top, assim eu devo encontrar minha cara metade. Não, metade não, que ninguém mais precisa de complemento coisa nenhuma, que isso aqui é era da informação, meus caros. Um Parceiro. Não sei porque, mas quando ouço essa palavra, imagino aquele cara que joga biriba com você às quintas-feiras, ou que dança com você na gafieira.

Modelar o meu amor. Agora sei que para conseguir um parceiro vou ter que soprar vidro, jogar fora meus livros do Rubem Braga e Fernando Sabino; os poemas de Baudelaire, Murilo Mendes, esquecê-los numa gaveta para sempre. Talvez fosse melhor queimar qualquer Drummond para não cair em tentações românticas. Ah, ia me esquecendo da melhor parte: o sexo. É preciso admirar o seu parceiro para aguçar o desejo. É claro que se ele estiver de fora das estatísticas do PEA (população economicamente ativa), esqueça; torna-se automaticamente descartável, um ser humano desprezível, inapto a participar do mercado de consumo e, portanto, incapaz de amar plenamente. Como poderia sentir desejo por alguém que não tem uma carreira, ambições, financiamento da casa própria e outros artefatos bélicos capitalistas?

Fim da entrevista. Pelo menos para mim. Aperto o botão vermelho do controle remoto com toda a raiva dos Excluídos da América. Dos solitários, dos desempregados, dos doentes de soma e nous. E sei agora não haver pigmentos disponíveis para colorir a monocromia da minha existência. Este programa de domingo conseguiu me deprimir da pior maneira, uma depressão que não dá samba. Que tipo de futuro posso esperar para mim, eu que não me encaixo em nenhum dos padrões mencionados em manuais do gênero. Só me resta o sono, antídoto infalível as horas tristes. Antes de dormir, dou uma última conferida no quarto. Minha cama, café gelado em chícara enorme, cortinas com pó na barra, os livros jogados desordenadamente numa estante de madeira, uma mandala indiana pendurada logo em cima, computador quebrado, cadeira velha de cozinha, ventilador faiscando e barulhando muito, fitas do chaplin, vinis jogados numa caixa de óleo por não ter onde tocar, tapete mineiro, espelho torto onde eu me vejo bem, potes e mais potes, sapatos em todo canto, fios e mais fios, azulejo de mal gosto, teto amarelo, detesto amarelo...

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 05/10/2005
Reeditado em 18/07/2006
Código do texto: T56858