Assombração do século XXI

O pensamento, mesmo ligeiro, já me tremia os músculos. Quando enfim chegou a labuta, enfim chegou a hora de sair de casa, enfim chegou o medo, enfim. Desde os primeiros passos até minha chegada a agência bancária, voaram cotidianos 15 minutos. A primeira vista havia uma fila que rendia meus joelhos e embaçava minhas vistas. A espera um milênio. A criança em minha frente seguia chutando sua progenitora -sorri azedo, como quem esconde a verdadeira intenção da face- e a passos curtos, as pessoas andavam. Olhei o relógio uma, duas, três vezes até desistir de manter minha postura intacta e me subverter ao cansaço. Pronto ! -pensei- vagarosamente me aproximei do caixa, como quem temia pisar firme, e iniciei o objetivo de minha saída naquela tarde chuvosa : a árdua e perigosa tarefa de pagar minhas contas. Ao digitar os suntuosos números, esperei ansioso a contagem começar e a válvula se abrir , eis o investimento em minhas mãos.

Naquele instante a insegurança apanha-me e num gesto quase natural escondo o suado dinheiro, num lugar tão úmido quanto minhas mãos. E de repente num súbito segundo dionisíaco, as pessoas que antes me ignoravam, passam a observar cada movimento meu. A quantia retirada - hoje enxergo - não era absurdamente grande, mas na visão de um eu, estudante, com 18 anos e pouca renda, era tão importante quanto uma obra de Drummond. Logo na saída da agência, a surpresa me arredondava os olhos, angustiado, os passos mais ásperos do que posso confirmar. A imagem imortalizada em minha mente de um falante de rua, com seu megafone, catequisando bêbados, fedidos e mal amados na praça ao lado - lembro-me de pensar algo torpe e assobrado. Andei mais rápido, o frio do dia se esqueceu de chegar a mim, a medida que andava o olhos saltavam o coração acelerado batucava em meu peito, o caminho se estendia numa dança de passos largos que levava acompanhando-me. Os outdoors das ruas, caiam sobre mim, os panfletos e propagandas chatas se estendiam frito um tapete sobre meus pés. Três, quatro, cinco, eram tantos os atentos olhos que me cercavam. Notoriamente estampado na face a minha desconfiança, a medida que passavam não passava o receio. As ruas cruzadas, vomitavam gente e cada vez mais os carros soltavam seu monóxido de carbono e as casas feias davam espaço para ordinárias facetas da urbanização vertical. A chuva aumentava a profusão de gente e carro e a andança em pouco tempo deu lugar a uma correria firme, em detrimento de um aguaceiro ligeiro. Acontece que meus músculos esgotados, já não respondiam a minha vontade e continuavam seu pedregoso caminho ate o local do pagamento, cotidianos 15 minutos se transformaram numa insuportável torrente de horas. Homens, brancos, negros e mulheres, nenhum escapava de minha impessoal ressalva. No ato de uma mão estendida uma pedinte de moedas, abordava-me. E a imagem de uma mulher mais assombrada pela vida, do que qualquer um me assumiu, em vítreo ,uma conotação quase poética de um demônio desumano e isento de bondade que me usurparia as tripas e a grana. Por isso mesmo, meus passos largos já nao eram passos, era uma corrida contra a chuva que escorria pela minha pele e encharcava minhas roupas, e contra meu mitológico medo do desconhecido.A angústia se findava nas escadas amareladas do prédio que me aguardava, subi os corrimões mais amarelos e toquei meu dedo no interfone, porém sem voz de dizer e não justificando o meu estado, o portão se abre estilhaçando o cansado braço que se estendia para alcança-lo. Passos tranquilos agora reinavam e a subida em êxtase era a ultima etapa de minha missão. No topo, todos sentados a minha volta, brinquei sem crer que era a última brincadeira que faria aquele dia. No canto esquerdo da guarita um prodigioso atirador me mirava, prodigioso foi acertar três tiros em meu tórax, no ímpeto momento de minha fuga, à passos incerto. E essa descida foi talvez a mais rápida, de primeiro não havia em mim o peso de toda a vida e voei por alguns miseráveis e adocicados instantes em que meus passos se confundiram num impulso para frente, tirando meus pés do chão, passos aéreos seria ?! Não sei, a morte me poupou de tal pensamento.

Victor Leonardo
Enviado por Victor Leonardo em 03/07/2016
Código do texto: T5686207
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