O gol da seleção de Portugal.

Somente agora, depois de aposentada da sala de aula, mas na ativa, numa profissão igualmente carregada de imensa responsabilidade, começo a arrumar um tempinho para viver. Explico: quem leciona não consegue um único final de semana para relaxar, refletir, compreender como caminha o mundo na sua simplicidade e fora dos projetos e planos de aula. Quem leciona é sempre rigorosamente cobrado pelo intelecto, pelas atitudes, pela vestimenta, pelo sonho que não pode realizar. E deve evitar terminantemente qualquer falta ao trabalho mesmo quando necessitando de tratamento médico. Não, professor não pode ter febre, crise de hipertensão ou mesmo uma incômoda e perigosa flebite. Filho de professor também não pode adoecer. Isso é proibido. Parentes de professor só podem morrer nas férias e o luto tem que ser rápido, isto é, no mesmo período de férias. Jamais aparecer com olhar choroso em sala de aula. Professor tem que ser exemplo, digamos, um semideus. Nem espirrar pode. Quanto menos viver.

Então resolvi aprender a viver, um tanto tardiamente, confesso, mas comecei a entender que também posso perceber e vivenciar as belezas da cidade, a ginga das tardes lindas mesmo de inverno, o desfilar contente e jovial da tocha olímpica na minha querida capital Catarina.

Então comecei a pensar no quão fastidiosa eu era para os meus alunos por não saber compreender a alegria deles quando iam a uma partida de futebol, clássico ou não, a um show ou a uma simples festa. Se eu pudesse voltar e me desculpar com cada um deles, por eu não entendê-los, por eu cobrar sempre um conhecimento maior do que estavam, até então, aptos a possuir... como eu seria feliz por isso.

Mas não posso voltar e falar com cada um deles, dizer que eu não os compreendia por simplesmente não saber o que era viver bem. Quero chegar a todos esses corações e pedir desculpas, de alguma forma. Porque, agora, eu sei o que é viver.

De volta para casa nesse domingo de sol, tomamos o café com um bolo maravilhoso de chocolate com ganache. E fomos assistir o final da Eurocopa. Tudo muito novo para mim, não haverei de mentir. O direito a um tempo livre, o curtir a ociosidade de forma saudável e criativa, tentando observar outros olhares, outros mundos

Bola vai, bola vem e neca de gol. As seleções de Portugal e França suando, mas nada de mexer o placar. Cristiano Ronaldo saiu de cena logo no primeiro tempo. Só no segundo tempo da prorrogação o time português fez o seu gol. Muito legal. Achei bonito.

O autor do gol foi um cidadão nascido na Guiné-Bissau, um negro. Certamente as dificuldades passadas por aquele garoto são indizíveis. E superou, com muitos revezes, acredito.

Parabéns, Éder. Você lutou até o fim. Importante a sua presença. O seu histórico de vida, num orfanato, abandonado pela família, não deve ter sido nada fácil mesmo. Deve ter tido muitíssimas vontades de chorar, de querer um colo ou mesmo um sorriso. Um doce, um afago. Parabéns, Éder. Seja muito feliz e que seja reconhecido pelo seu esforço e profissionalismo. Que Deus guie os seus passos, como os de todas as crianças sem chão – material e emocional.

Mas acontece que leio os jornais e só vejo destaque para Cristiano Ronaldo. Nada contra o jovem atleta, absolutamente. Mas ele não foi autor do gol, não jogou até o final da partida, não definiu o resultado... e esta lá, segurando a taça, sorridente e afortunado pelo feliz resultado do jogo.

Sem dúvida, a vitória é da equipe e todos têm os seus méritos. Mas, vamos reconhecer: o homem negro, que deu a vitória ao time, a primeira vitória de Portugal na Eurocopa, não apareceu. A mídia com uma rapidez estonteante se esqueceu dele.

Uma mesma mídia que denuncia questões ligadas a injustiça, a racismo, segregação e outras truculências relativas aos direitos humanos está mostrando um rosto inquieto e assustador.

Imprensa, oh, imprensa, abra os olhos e dê destaque e importância ao trabalho de um jovem negro que fez com que a antiga metrópole levasse o troféu. Fale dele, mostre o seu perfil, apresente o Éder a quem não o conhece. Certamente ele teve muitos méritos diante de uma partida carregada de tensão e cobrança por parte dos patrocinadores. Ele deverá gostar de ser reconhecido pela proeza. Nos anos 30, Hitler ficou injuriando, tendo um monte de piriri quando um negro levou a melhor nas olimpíadas realizadas em território nazista. Mas Hitler era um caso à parte. Peraí, acho que não era um caso à parte não. Muito do seu ranço, do seu conservadorismo, do seu rancor pelos diferentes, do seu ideal de superioridade branca, da sua maldade incalculável está vagando pelo universo, quer midiático ou não.

O cuidado e o respeito às sensibilidades, ao histórico de vida, ao esforço, ao profissionalismo devem estar na ordem do dia, especialmente em tempos sombrios. O contrário disso leva a mais desatinos por parte de uma sociedade que sabe ler nas entrelinhas.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 10/07/2016
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