As águas do eterno

“As águas correm, correm para sempre.” Esse verso ficou cantando na minha cabeça. Alguma coisa dentro dele revolvia o tempo, dava um novo sentido a isso que chamamos tempo, chegava mesmo a mexer com a noção que temos das coisas.

Eu era adolescente ainda quando ouvi falar em Heráclito. Eu lia Murilo Mendes: “Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho/ ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”. Nenhuma novidade para mim: as águas são sempre novas águas. Nem a contestação que alguém tentou fazer recentemente: de que eu também me transformei. É o óbvio. Por isso a conclusão de Murilo: “nem ama duas vezes a mesma mulher”. A amada já se transformou. Continuamente nos tornamos outros, até a nós mesmos.

A novidade no verso inicial é o “para sempre”. Porque é meu esse verso: eu ia a Igaraçu do Tietê no dia seguinte, e imediatamente pensei esse verso. Planejei: quando chegar, diante da beleza das águas, vou escrever o poema. Na viagem, ao atravessar a ponte em Pederneiras, contemplei a beleza do rio, o horizonte líquido, as árvores, as garças... Mas o início do poema era mais forte do que a paisagem que eu estava vendo. Quer dizer, a paisagem era deslumbrante – mas eu queria algo que transcendesse o deslumbrante.

O problema era o “para sempre”, que eu chamei de “novidade”. Se um poema não apresenta nenhuma novidade, não vale a pena, não merece ser escrito. (Ver Pound: “Literatura é novidade que permanece novidade.”) O meu poema valia a pena. E escrevi-o, não nos três dias em que me extasiei diante das águas, mas em casa, depois que as sensações se sedimentaram em mim, depois que se incorporaram em mim. Então pude escrevê-lo, e com a justeza que queria, embora não se resolvesse o espanto que aquele “para sempre” deixou em mim.

O que pode existir para sempre? O eterno. Por isso a repetição: não apenas “as águas correm”, mas “correm, correm”, como que a enfatizar que o ato de correr não se esgota, não acaba. Não apenas para compor o decassílabo (afinal, nem era um poema metrificado), ou para encorpar o verso. A idéia o exigia. Ainda mais que logo em seguida se conclui: “para sempre”. A ação do verbo se concretiza nessa expressão, isto é, no eterno.

Por mais que me digam, desde Heráclito, que as águas se renovam, que nunca são as mesmas. Por mais que a física, que a simples observação me diga que as águas passam, e logo em seguida são substituídas por novas águas. A idéia que eu faço de água é uma só. Água é água, e pronto. Não interessa que passou, ou que passaram, as águas. Eu continuo a conceber o mesmo elemento.

Às vezes é fácil se ter uma visão do eterno. Ou de Deus, o que é a mesma coisa. Qual é o elemento, o ser, que nunca se transforma? Tenho que chegar à idéia de Deus.

As águas se transformam? São sempre outras? Bobagem. Heráclito é muito antigo, ou, por outra, ele sabia disso, o que queria era fazer-nos pensar. Água é sempre água. É a idéia que eu faço desse elemento. Eu também me transformo? Certo. Mas a idéia que faço de mim é a mesma.

Pau é pau, pedra é pedra, por mais que as células se renovem, se tornem outras. Somente um ser não se transmuta em outro, somente Deus tem existência de per si.

Não posso conceber outra forma do meu ser. Outro ser. Por mais que as águas passem, que as células se substituam a cada sete anos, por outras e outras. Eu continuo sendo eu. A essência permanece.