UM SENHOR INCLINADO

O Senhor tem ar de quem vive para dentro, é magro veste bem, fato e gravata sempre, sapatos pretos, e empunha uma pequena pasta em cabedal igualmente preto. Caminha apressado agredindo a nossa noção de equilibrio e desafiando o seu.

A sua figura leve, tímida, oblíqua parece caminhar num plano inclinado que nós não divisamos. Talvez a gravidade não actue sobre esta ténue personagem que creio ser alguém também capaz de arrostar fleumático com outras forças da natureza, incluindo multidões que penso permeáveis ao seu destino incógnito para onde se inclina precocemente ignorando o mundo.

Quando passo junto dele fico atento e pronto a acudir amparando-lhe a queda provável afinal apenas só na minha imaginação. Há anos que este desafio ao equilíbrio percorre a rua incólume. Actor discreto, inseguro e singular, parece não ter amigos, colegas ou família, percorrendo a rua solitário. Entra por vezes no café sorve a meu lado o estímulo em um ou dois golos breves, e sai com a peculiar inclinação, absorto e sem palavras.

Faz parte do cenário desta rua e então ninguém dá conta dele como de cão ou gato apenas figurantes tornados invsíveis pelo quotidiano repetido.

De subito mereceu-se-me foca-lo iluminando esta apagada e irreal personagem, que de Inverno se some mais ainda numa longa gabardine cinzenta abotoada quase até aos pés, e pensei; se além de uma pessoa não seria um Pessoa ou um Einstein, sei lá, e se naquela pasta preta não estaria um Universo inteiro em formulas matemáticas resumindo o mundo ou em poemas alcançando Deus.

Todos os génios vulgares na rua têm uma inclinação sublime no espaço mental e a inclinação deste Senhor, ia jurar não se limita apenas a uma questão física.

Até que seja identificado fica por enquanto esta minha homenagem como se fora ao soldado desconhecido.

Apenas me a assalta uma vaga incerteza. Poderá trtar-se apenas de um obcecado contabilista? Um fanático arquivista? Um rigoroso recepcionista consular?

Que o seja, com todos os direitos e deveres iguais aos dos génios. A minha teoria torna-se assim numa especulação vazia, no entanto deixo aqui este actor anónimo subir ao palco da imaginação.

Um dia, sim, cairá finalmente no infinito, a par dos génios, poetas e demais mortais que somos nós.

Arbogue
Enviado por Arbogue em 25/07/2016
Código do texto: T5708916
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