O que é a vida? O que é a morte? - II
 
Quando eu e minha irmã Auxiliadora Vieira chegamos ao hospital, Salvador Augusto, o nosso Dozinho, dormia tranquilamente, com alguns fios enfiados no nariz e na boca. Mamãe, trêmula, falou baixinho que o fim estava próximo. Algumas pessoas queridas chegaram. O Senhor Leopoldo, diretor do colégio, trajava óculos escuros, no afã de esconder a emoção; e Dona Ita, aquela senhora praticante da mesma fé, juntou as mãos em oração silenciosa.

Mal chegáramos, seu corpo frágil iniciou respiração diferente. Mamãe levantou-se, acercando-se do leito; papai também. Protetores, sempre. Intervalo ritmado... cada vez mais espaçadamente... uma vez agora... outra... outra... outra... outra... outra... até parar de uma vez... Nesse momento, seus olhos esverdeados abriram-se, num último olhar às duas queridas irmãs. Fixou-se em nós e se foi. O que significaria aquele olhar? Adeus? Até breve? Até nunca mais? Ou seria simplesmente em agradecimento por estarmos ali, naquele momento em que a gaiola dourada de sol abria-se, para que voasse para a eternidade? Fiquei a esperar - meio sem querer entender tudo aquilo - para ver se respiraria mais uma vez... Nada... Foi tudo muito rápido e incontrolável. Pareceu-me uma lâmpada, que se desligava da tomada. Meu pai, com os olhos transparentes de lágrimas e dor, agarrou-se aos pés da cama, a exarar uma única frase: - Graças a Deus... Então, compelida a entender aquela realidade, comecei a chorar. Mamãe ralhou: - Não chore; ele não queria...  pediu-me que ninguém chorasse! - Mas, desobedeci e chorei.

Aproximamo-nos do corpinho tão branco. Minha irmã cerrou-lhe os olhos...

Quando tudo parecia ter chegado ao fim, os olhos desesperadamente em paz da minha mãe acariciaram aquelas mãozinhas inertes e ainda quentes: - Minhas mãozinhas... - sussurrou. Despediu-se daquelas duas joias, que todas as manhãs lhe ofereceram violetas plantadas por ele mesmo num cantinho do quintal da nossa casa, numa forma inesquecível de homenagear a mãe idolatrada. Almas gêmeas, mãe e filho. Mãe enamorada, num soluço contido, afagou-lhe os braços e o rosto, docemente. Beijou-o por inteiro, para que se sentisse protegido pelo seu amor, mesmo depois de morto.

- O pior virá depois... na saudade... - murmurou num fio de voz.

Quanta verdade naquele desespero refreado pela fé! Nenhum poeta jamais conseguirá descrever o paradoxo daquela despedida: tristeza e beleza, inigualáveis! Tenho-a gravada na minha íris, para sempre... Depois disso, se me pergunto o que é a Vida ou o que seja a Morte, relembro aquela tarde de domingo triste e respondo-me: - Uma lâmpada que se acende; outra que se apaga...

Assim foi a morte do meu irmão caçula, aos dez anos de idade, provocada por um câncer arrebatador. A única pessoa que assisti morrer, por toda a minha vida.
 
Hoje... após 48 anos...
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Texto escrito em:
Cabo Frio, 11 de junho de 2009 - 19h35
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 28/07/2016
Reeditado em 28/07/2016
Código do texto: T5711538
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