B + A = BA

De mãos dadas com minha mãe, caminhávamos por uma calçada à sombra de muitas árvores que estavam atrás de um muro bastante alto. Mamãe dirigia-me palavras doces de carinho. Era uma tarde morna e o sol já se ia escondendo. Ela chamou minha atenção para um pequenino objeto ao chão, parecido com uma semente, com uma ponta aguda. Em minha inocência, eu não sabia que aquilo era proveniente das árvores e podia girar como um pião. Incentivou-me a pegar alguns. Mais à frente, eu, com muita alegria, encontrei uma pequena borracha de apagar lápis, a qual também guardei.

Ao chegarmos, vi um grande portão de ferro. Depois de minha mãe trocar algumas palavras com o porteiro, entramos e o que vi foi uma casa muito grande, um lindo jardim repleto de flores, algumas crianças brincando e uma larga escada branca ladeada por dois leões de mármore também brancos, um de cada lado. Ao subir os degraus, ia-me perguntando o que era tudo aquilo. Ao tocar a campainha, veio falar conosco uma moça com um vestido de cor cinza. Ela cumprimentou minha mãe, as duas trocaram algumas palavras. Eu olhava, curiosa, aquele pequeno pião, até que a moça perguntou-me quantos anos eu tinha. _ Seis, respondi. Após a moça e minha mãe conversarem mais um pouco, tomamos o caminho de volta a nossa casa, onde aprendi a girar o pião. Guardei a borracha por um bom tempo, até que me desfiz dela em uma de nossas mudanças. Tanto esta como o pião já não os tenho, mas carrego na lembrança a delicadeza de minha mãe ao caminhar comigo em direção àquela que seria, um ano depois, minha primeira escola. Naquele lugar eu estudaria por nove anos e aprenderia a ler, escrever e calcular.

Muitos de vocês talvez se lembrem da Cartilha Caminho Suave, da educadora Branca Alves de Lima (1911-2001). Atualmente ela está na 131ª. edição, renovada, ampliada e atualizada com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Segundo a Wikipédia, sua primeira edição data de 1948, e até meados da década de 1990, 50 anos depois, ela foi responsável pela alfabetização de cerca de 40 milhões de brasileiros, conforme dados do Centro de Referência em Educação Mario Covas.

O meu exemplar naquele tempo era no formato pequeno. Na capa havia um menino e uma menina de uniforme e pasta embaixo do braço, andando por um caminho em curva, sob uma árvore florida, parecendo uma cerejeira, até uma grande e imponente escola, convidando-nos a aprender. Minha mãe a encapou com papel-manteiga, que era um papel grosso, mas transparente, e na cor bege. Foi com ela que conheci as letras e a formação das palavras. De forma lúdica, fazíamos os exercícios como copiar as letras e sílabas, aprendendo as vogais e consoantes. Então íamos juntando duas sílabas e formando inúmeras combinações. Através de desenhos formados pelas letras, nos divertíamos, curiosos, vendo, por exemplo, que a letra b com a letra a, formava ba, de barriga... e assim aprendíamos que p mais a era pa, de pato. Nosso vocabulário ia se formando com as palavras navio, sapo, tapete, vaca, xadrez, zazá, zabumba... e, com isso, descobríamos um universo novo a cada aprendizado. Não a tenho mais guardada, mas vejo, na edição atual, o ensino das frases como: eu vejo a barriga do bebê... e com ela mais algumas palavras: baba, bebê, bibi, bobo... e as sílabas ba, be, bi, bo, bu (em letras maiúsculas e minúsculas). Há as lições como: o bebê baba ou o cachorro bebe na cuia, ou ainda a cuia é de coco.

Lembro-me até hoje quando aprendi a ler. Tinha em mãos um gibi da Mônica, de Mauricio de Souza. Eu estava na sala de estar. Via as letras e pronunciava cada sílaba, lendo em voz alta e meu irmão mais velho chamou a atenção de todos exclamando: _ Ligia!!! Você está lendo!!! Pronto, daí foi uma festa: meus dois irmãos a baterem palmas, minha mãe a me abraçar e, mais tarde, quando meu pai chegou do trabalho, na conversa ao jantar, a novidade lhe foi contada. Pediram para eu ler. Peguei o gibi e, gloriosamente, repeti o feito, para contentamento e vibração de todos. Pela reação ao meu redor, senti este fato como algo muito especial, tanto que permanece inesquecível para mim. Pensando bem, ao aprender a ler, o mundo se descortina no horizonte. Passamos a fazer parte de um contexto bem maior, temos a nossa frente um leque de possibilidades, de acesso e compreensão da realidade a nossa volta.

Sabem, fiquei feliz o dia em que curiosamente encontrei um exemplar dessa Cartilha em uma grande livraria desta capital de São Paulo. Ainda segundo a Wikipédia, “em 1995, Caminho Suave foi retirada do catálogo do Ministério da Educação (portanto não é mais avaliada), em favor da alfabetização baseada no construtivismo (a ideia de que nada, a rigor, está pronto, acabado, e de que, especificamente, o conhecimento não é dado, em nenhuma instância, como algo terminado)”. Há críticas em relação a este método no sentido de haver falhas epistemológicas. Segundo Carlos Eduardo Laburú, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e Marcelo de Carvalho, com quem escreveu sobre o assunto na Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, no Rio Grande do Sul, “o construtivismo como um todo falha, epistemologicamente, ao defender a ideia de que, para a construção da realidade, bastam as crenças e/ou as experiências dos aprendizes. O perigo de tal atitude está no fato de que, ao priorizar-se o pessoal ou o social, em relação ao mundo natural, deixa-se de distinguir entre objetos teóricos e reais”.

“Apesar de não ser mais o método ‘oficial’ de alfabetização dos brasileiros, a cartilha de Branca Alves de Lima ainda vende cerca de 10 mil exemplares por ano” e é certo que, como dizem especialistas em pedagogia, sendo um dos dois únicos métodos realmente brasileiros de alfabetização em português (o outro é a Cartilha Sodré, de Benedita Stahl Sodré), contribuiu, por muitas gerações, para o efetivo aprendizado de nossa língua pátria. Afinal, quem discute o fato de B mais A ser igual a BA?

Ligia Pezzuto
Enviado por Ligia Pezzuto em 30/07/2016
Código do texto: T5713461
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