Viagem a Portugal -Âmbito de Lisboa

VIAGEM A PORTUGAL

ÂMBITO DE LISBOA

2016.

Quarta - feira , 2 de junho

Em princípio já não me animo a viajar para o exterior. Prefiro ficar no meu canto, matutamente, como é do meu jeito. Os países mais significativos para mim são, naturalmente, os de minhas origens: França, Espanha, Portugal e naturalmente esta minha pátria amada, Brasil. Os outros mexem com a minha imaginação, mas ficam só na imaginação mesmo. Além dos mencionados, conheci Nova York e a Suíça francesa e alemã. Bem, Nova York é Nova York, impressionou-me pela grandeza, tive a impressão de estar no Centro do mundo. Mas a barreira da língua me atrapalhou muito. Não consegui me identificar com os nova-iorquinos provavelmente por culpa minha e não deles. Bem, e a suíça, cá entre nós, a não ser a beleza natural, é bem chatinha. Mas pelo menos em Genebra entendia a língua, pois falo francês. Quanto à Suiça alemã, passei rapidamente por Zurique, bebi muito chope e caí fora, pois estava de passagem mesmo. Mas como o trecho de Genebra a Zurique foi de trem, ficaram em minha memória paisagens magníficas , do lago e das montanhas cobertas de neve, tão estranhas para alguém que veio de um país tropical. Tive a sensação de estar em outro planeta. De qualquer forma Genebra tinha algum sentido para mim, pois meu pai morou lá durante alguns anos.

Em meados de maio minha mulher, numa conversa em família, me disse que ia tirar as férias dentro de uns dias e me propôs que fossemos à Bahia. Respondi logo, quase sem pensar: “Já fomos várias vezes à Bahia, porque não a Portugal?”. Surpresa. Os olhos de minha mulher e da minha filha brilharam. Conhecem , quando se fala em viagem internacional, a minha reação: “Nem pensar”. O bicho do mato se arrepia todo...

É claro que dias depois estávamos em Portugal.

Agora, me pergunto: porque Portugal? Não sei o que me levou a responder de modo tão incisivo e imediato. Pode ser que o fato da vida em Portugal ser relativamente mais barata tenha contado. Mas a causa principal, a mais profunda, situa-se em área nebulosa da minha cabeça , pois, das tradições de família, as portuguesas não são as mais fortes. Uma resposta mais superficial seria que já conhecia a França e a Espanha. Mas, de minhas origens , a que mais mexia com a minha curiosidade era a portuguesa. Lembro-me que há muitos anos li , num trecho do Casa Grande e Senzala, do Gilberto Freire, uma descrição do modo de ser português. Identifiquei-me imediatamente com aquela evocação de homens de temperamento instável , que iam , num átimo, da alegria à tristeza, sujeitos à melancolia, cheios de rompantes, sensíveis e nostálgicos, por vezes brutais, conforme as circunstâncias. E pensando melhor, descubro que ir a Portugal era um desejo oculto em minha mente, algo que me impulsionava a ir de encontro a uma parte desconhecida, e de certa forma relegada de mim mesmo. Uma ponte. Faltava esta viagem para que um ciclo de compreensão de mim mesmo se fechasse. Não foi uma decisão lógica, mas um impulso.

Saímos do Rio às 17.45 e chegamos às 6.40 em Lisboa. O sol já ia alto quando pus os pés no chão. Espantei-me com a luminosidade extrema. Uma luz que só vi no Nordeste em época de seca. Talvez até maior. Feriu-me os olhos, principalmente a vista direita , recém operada de catarata. Passei a usar óculos escuros o tempo todo. A viagem foi excelente. Viva a TAP! Obrigado São Pedro! Cruzamos o Atlântico em mais ou menos cinco horas, das nove de vôo. Não pude deixar de pensar nos navegantes do século XVI, em suas caravelas, enfrentando semanas seguidas o Mar Oceano, como diziam, ao sabor dos ventos, e às vezes, das calmarias. O Mar Oceano, este monstro desconhecido, que muitos pensavam que acabava num abismo! Gente de coragem! Mas como tudo é relativo, pergunto-me se aqueles aventureiros ousariam embarcar num avião, para atravessar pelos ares, dentro da noite escura, a mais ou menos 10 mil metros de altitude, o mesmo Oceano. Acho que o fariam, se informados dos riscos, mas boquiabertos, meio aparvalhados de tanto espanto, como seria o nosso caso embarcando numa nave espacial......Isto me fez lembrar de uma anedota antiga, bem antiga, do tempo em que os portugas, como se dizia, eram carregadores de malas dos passageiros nos aeroportos. Segundo a piada, aconteceu no Aeroporto de Aracaju, um dos lugares mais quentes do Brasil. O avião pousara sob o sol de uma hora da tarde. O passageiro, muito bem vestido, suava copiosamente. O carregador então, com o sotaque da santa terrinha, comentou: “Também pudera, doutor, a explosão e mais pesado que o ar”...

Quando vi Lisboa, pensei, já bem à portuguesa: “ Cá estou. Pronto”. Maravilhado.

Logo me decidi a anotar algumas impressões, para escrever este relato. Não pretendo descrever as paisagens dos locais por onde passei, porque acho que na internet se encontram imagens belíssimas, que muito melhor do que as palavras, traduzem o que vêem os viajantes. Minha intenção é falar do que despertaram em mim. Este texto, de natureza subjetiva, será muito enriquecido se o leitor acessar na internet os lugares por onde andei.

Instalamo-nos num apartamento alugado, perto do Panteão, numa das partes mais altas da Cidade de Lisboa. Embaixo, a estação Santa Apolônia. Dali partíamos para nossas incursões a pé, de taxi , comboio ( ônibus), elétricos (trem) ou metro (metrô).

No dia da chegada passeamos na Praça de Santa Clara , local do Panteão Nacional , e onde repousam os restos mortais de várias figuras de grande expressão, inclusive da maior diva do fado, a inesquecível Amália Rodrigues - lembrei-me do “Porque tanto me persegues, se de mim nada consegues”.... Andamos por aquelas ruas em volta, com velhos prédios que fazem de Ouro Preto uma réplica da velha Lisboa - logo me veio à mente o soneto do Gonzaga, que aliás era português : “Tu não verás, Marília, cem cativos...” e o final singelo e lindo : “Se encontrares louvada uma beleza, Marília, não lhe invejes a ventura, que tens quem leve à mais remota idade, a tua formosura”...e é verdade, tanto que estou citando o nome dela...confesso que tudo me pareceu familiar, desde logo me senti em casa passando por aquelas ruas antigas que dão no Campo de Santa Clara. Ali do alto, onde batia uma brisa fria, vindo mar, tínhamos uma esplendida visão do Tejo, que Lisboa margeia em boa parte. É um rio mais largo que eu imaginava, e a conjunção cidade – rio, de uma beleza impressionante. Salvo engano, a distancia entre as margens equivale a da baía de Guanabara no trecho que vai do Rio a Niterói. Pessoalmente imaginava Lisboa como uma cidade mais velha, mas ela apresenta um aspecto moderno surpreendente. A região onde se encontra o Oceanário, por exemplo, lembra nossos espaços mais modernos, no Rio de Janeiro.

Quinta-feira, 3 de junho

Belém.

Saindo-se do centro de Lisboa, via ponte 25 de abril, chega-se, três a quatro quilômetros depois a Belém , antigo Restelo, que era talvez o mais seguro local de atracação no Rio Tejo. Pouco a pouco , a partir dos descobrimentos, Restelo passou a ter uma importância crescente, dada a movimentação de embarcações. No local , D.Manuel I, o rei da época dos Descobrimentos e por isto chamado de O venturoso, mandou construir uma torre para proteger o porto , e mas tarde, o Mosteiro dos Jerônimos. Nele, os grandes navegadores portugueses faziam suas vigílias antes de enfrentarem os desafios de suas viagens ao Desconhecido. A partir da intensificação do movimento marítimo, o crescimento foi constante e o conjunto , monumental em sua grandeza, integrou-se paulatinamente a Lisboa, passando a chamar-se Santa Maria de Belém, popularmente, Belém. Em frente ao Mosteiro dos Jerônimos, temos o Padrão dos Descobrimentos, obra monumental e comemorativa dos grandes feitos portugueses no século XVI, construída em 1960. Ao deslumbrar todo o conjunto é impossível não nos integrarmos ao sentimento de exaltação de nossos antepassados portugueses que, com seu arrojo, revolucionaram a navegação mundial de seu tempo e descobriram, para o Ocidente, não só o novo caminho para as Índias, mas a Pindorama, o nosso Brasil. Muitas coisas me empolgaram em Lisboa, além da boa comida e os bons vinhos, mas os conjuntos da Praça do Comercio e Belém ficarão em minha memória como os marcos de minha viagem a esta cidade simultaneamente tão moderna e tão antiga. No entanto, não pude deixar de me lembrar da tragédia dos Távora, executados nas cercanias de Belém. Uma mancha na biografia de D. José I e do Marques de Pombal. A execução de quase toda uma família ( uns poucos conseguiram fugir para o Brasil, dando origem ao ramo brasileiro dos Távora) com requintes de crueldade, abalou toda a nobreza da época e a jovem princesa que depois reinou com o nome de Maria Primeira e que tentou, por todas as formas ao seu alcance, impedir aquela execução medonha. Ao chegar ao trono, uma de suas primeiras medidas foi exilar Pombal de Lisboa, dando vazão à sua aversão ao antigo ministro de seu pai, um grande estadista, sem dúvida, mas frio e sanguinário quando julgava estar defendendo o poder da Coroa.

Durante o dia soprou um vento forte e desagradável, bastante frio.

Gostaria de ter ido à Praça D.Pedro IV, no Rossio. Este rei, como se sabe, é o Pedro I, do Brasil. Sou admirador de nosso jovem primeiro Imperador, que partiu para Portugal após a Abdicação e , em muito pouco tempo ganhou a guerra contra seu irmão, que se apoderara do trono em detrimento de sua filha Dona Maria da Glória. Este, antes de falecer pouco depois da guerra, pois reinou apenas por alguns meses em Portugal, outorgou ao País a sua primeira Constituição Liberal. Na cidade do Porto também há uma estátua em sua homenagem e seu coração está conservado na Igreja da Lapa.

Sábado, 4 de junho

Vila Nogueira do Azeitão – Serra do Arrábida

A Vila Nogueira do Azeitão não estava em nossos planos; mas, ao entrar em contato com minha velha amiga A. F. ela nos convidou a conhecer a Vila onde passou boa parte de sua infância. E lá Fomos nós. Pegamos, pela manhã, o metro até a estação Praça de Espanha e ali fizemos uma baldeação para o comboio , na direção de Setúbal. Combinara com a Ana sair de Lisboa lá pelas dez, mas com esta minha inquietação, acabei avançando a viagem e saí por volta das oito. A . , que não fora avisada, desligou o telefone, e dormiu até mais tarde. Conclusão: não conseguíamos fazer contato, e isto , confesso, me deixou nervoso, porque não tinha a menor idéia para onde ia; ela combinara de nos pegar num certo ponto, e fiquei com medo de ficar com a família na estrada. Agora, ao escrever estas linhas, vejo que era coisa da minha cabeça, já que a parada foi na própria Vila. Dez minutos depois da nossa chegada, ela apareceu.

Foi muito bom rever a minha velha amiga. Não nos víamos há muitos anos. Fomos a um bar e comemos alguma coisinha. Pusemos os assuntos em dia, jogamos conversa fora. Depois demos uma volta pela Vila.

Azeitão é uma típica vila portuguesa , com certeza; simpática, e como quase todos os locais, também com uma parte alta e uma baixa. Um velho casarão, aparentemente desabitado, chamou a minha atenção. Disse-me A. que pertenceu a um membro da família Távora.

Como a Cidade é pequena, a visitamos nos seus contornos gerais, onde o moderno e o antigo convivem de maneira harmoniosa, e depois seguimos para o Portinho de Arrábida, através da serra do mesmo nome, hoje um parque nacional. Curioso como sou, pesquisei na internet, o significado da palavra Arrábida : o termo origina-se da palavra árabe al rabat e significa local de oração, e ligada semanticamente ao verbo vigiar. Não poderia haver melhor nome, pensei comigo mesmo; há algo de terrificante naquele lugar, marcado por fortes contrastes de altitude. Imaginei um viajante ali perdido dentro da noite. Ao lado da estreita estrada, que antigamente não deve ter sido mais que uma trilha, há uma vegetação muito antiga, e estranha, como se fosse de imensos arbustos grandes como árvores, ou o contrário, árvores que têm aspectos de arbustos. Lembram as matas primevas que vemos nas gravuras representando eras passadas. Soube que apenas em alguns raros locais do Mediterrâneo se encontra tal tipo de vegetação , como na região da Dalmácia. A estrada margeia alguns penhascos e uma pessoa andando por ali numa noite escura poderia facilmente ser vítima de uma queda fatal. Não vi nenhum lugar parecido e que me causasse tão estranha sensação. Inclusive de sentimento místico: ao olhar para região tão rica e desolada ao mesmo tempo, dá vontade de se retirar do mundo e viver em oração e meditação. Ou o contrário, de fugir a galope daquele lugar, dependendo do mundo interior de cada um. Impossível, no caso, ficar no meio termo. Nesta montanha , realmente diferente de tudo que jamais vi, há muitas escarpas que se prestam ao alpinismo. Há várias pontos para a escalada, em diferentes locais da montanha. Um fato que me fez sorrir, e que demonstra o jeito próprio dos portugueses de nominarem as coisas, é que uma dessas pistas se chama “o Cu de Judas”.

Foi o apelo do local que provavelmente se apoderou do franciscano espanhol Frei Martinho de Santa Maria, que na primeira metade do século XVI, recebeu de D. João de Lancastre, em doação, o convento que em homenagem a Nossa Senhora ali mandara construir. Por este convento passou São Pedro de Alcântara e o poeta Frei Agostinho da Cruz, que ali viveu por muitos anos. O convento se encontra na face Sul da Serra, à beira de um penhasco e voltado para o mar.

Mas, como vimos, a palavra árabe também leva à idéia de vigiar. Sendo de terras altas, situadas em ponto estratégico, o forte de Arrábida, que se encontra bem no alto, a sudoeste, e também de frente para o mar, foi construído no século XVI, após a Guerra de Restauração. Com o Forte Santiago de Sessimbra e Santiago do Outão, formavam um sólido trio de defesa da costa de Portugal. Não visitei as edificações a que me referi, mas as vi de longe, compondo de maneira magnífica aquela paisagem incomum. o do Outão. Atualmente funciona aqui o

Finalmente chegamos ao Portinho de Arrábida , um local de grande beleza. Por se encontrar entre dois paredões da serra, lembrou-me a nossa Itacoatiara. Só que para mim, Itacoatiara, dada a força das matas que a envolvem é, aos meus olhos, mais bonita; em compensação, o mar de Arrábida, de águas frias, é de uma cristalinidade e pureza inigualável. O Portinho é hoje um local muito visitado, e tem bons restaurantes. Comemos ali um peixe , robalo, se não me engano, saborosísssimo, acompanhado de um vinho branco que parecia o néctar dos deuses. Soube que no Portinho havia uma salga de peixes que data da época dos romanos. Como se vê, a ocupação do local é muito antiga. Antes dos romanos, por ali viveram povos proto históricos , talvez de origem semita.

Mais para tarde, voltamos de carona com a A.F. para Lisboa. Foi um dia inesquecível.

Domingo, 5 de junho

Oceanário, almoço, e Praça do Comercio

Tiramos nosso terceiro dia em Lisboa para conhecer o seu famoso Oceanário, um dos mais completos da Europa. O Parque da Nações, também à margem do Tejo, onde se situa, é um local moderno e impressionante, pela arquitetura e extensão. São cerca de 5 quilometros à margem do Tejo. Fomos de Metro, da Estação Santa Apolônia à Estação Oriente, com baldeação da linha verde para a linha vermelha. A estação Oriente é uma maravilha da arquitetura moderna.

O Parque foi construído para a EXPO 98, numa área totalmente degradada.

O Oceanário, realmente vale a pena ser visitado. É internamente dividido em “mares” com espécies de três Oceanos. A sensação é que se está sob a linha d’água, com os peixes desfilando calmamente diante de nós. São milhares, desde os barracudas e tubarões até o cavalo marinho e muitas e muitas outras espécies. Valeu a pena o mergulho.

Lembro-me que fomos a um shopping imenso, com centenas de lojas de roupas e outras. Minha mulher e filha deleitaram-se. Lá comprei uns óculos escuros, porque minha vista, operada há um mês, estava muito sensível à luz e eu estava usando os óculos de minha mulher.

Depois da extensa caminhada, no parque e no shopping, fomos almoçar. Há restaurantes para todos os gostos. Entramos num dos famosos e comemos um Bacalhau à Braz, realmente de lamber os beiços, acompanhado por um simples, mas excelente vinho branco da casa.

De lá, saímos para a Praça do Comércio.

A Praça do Comercio impressiona por sua grandeza e suntuosidade. É uma das maiores praças da Europa, com 36.000 mil metros quadrados. Mais conhecida como o Terreiro do Paço, situa-se à margem do Rio Tejo. D. Manuel Primeiro, o Venturoso, transferiu a residência real do antigo palácio de São Jorge para o então Paço da Ribeira vítima do terremoto que destruiu Lisboa, em 1755. Na ocasião, perdeu-se também a sua imensa biblioteca, de 70.000 volumes , com preciosos livros que relatavam as conquistas marinhas de Portugal, inclusive com cartas relativas ao descobrimento do Brasil. Uma perda incomensurável, da dimensão da destruição pelo fogo da biblioteca de Alexandria. O Palácio foi reconstruído pelo marques de Pombal. Toda a estrutura, inclusive o formidável arco do Triunfo da Rua Augusta é de uma grandeza formidável. Marcou-me profundamente. O local sempre foi a entrada nobre de Lisboa, mas ali, ao longo do tempo, também foram praticados atos de violência, como ocorreu em 1640, quando, no fim da união das coroas de Portugal e Espanha, um secretário de estado foi atirado de uma das janelas do Paço ao terreiro; e em 1908, quando o rei D.Carlos e seu filho príncipe D. Luiz Felipe, foram assassinados quando passavam no local.

No centro da Praça domina a estátua equestre de D. José I. O monarca, lá do alto, olha sobranceiro para o horizonte imenso.

À noite tomei um gostoso banho de banheira, com água mais para quente, coisa que não me lembro de ter feito nos últimos sessenta anos. Delícia.

Segunda-Feira, 6 de junho

Sintra

Sintra foi a última cidade que visitamos no entorno de Lisboa. Localiza-se a mais ou menos 30 quilômetros da capital . Fomos de elétrico. Linda, a Estação do Rossio, construída no Século XIX, tanto pela prédio, com seus belos arcos internos , como por seus painéis interiores. Passamos por Queluz, onde nasceu e morreu D.Pedro I . Ali também viveu por longo tempo o sábio e estadista judeu Isaac Abravanel , ancestral do nosso Sylvio Santos. É a segunda cidade mais populosa de Portugal; constitui-se, segundo parece, nas partes mais altas da serra que lhe dá o nome. Como Lisboa, que foi construída, segundo a tradição, sobre sete montes. Seu início se perde na noite dos tempos, como acontece em várias regiões de Portugal. Foi habitada por povos lá do paleolítico, e mesmo antes, mas sua historicidade mais conhecida data da época dos romanos. A partir do século VII integrou o Garb Al Andaluz, a periferia ocidental do território ocupado pelos mouros, que teve na Espanha, em Sevilha e Granada, o centro de seu poder.

Conseguimos um simpático guia que nos levou a vários pontos da região. Infelizmente, como fomos de manhã para voltar à tarde, não vimos tudo o que há para ver.

Antes de mais nada, diria que a Serra de Sintra não desperta sentimentos místicos, tal como a de Arrábida. É menos alta, e menos contrastante, em termos de morfologia, e a vegetação é mais luxuriante. Dizem que ambas são ocas, cheias de túneis e cavernas.

A primeira construção que visitamos foi a Quinta da Regaleira. Confesso que me desagradou, de algum modo. Trata-se de uma construção do final do século XIX, idealizada pelo arquiteto italiano Luigi Manini, que teve que traduzir as concepções esotéricas de seu cliente, um milionário excêntrico, o Barão de Almeida, que, segundo consta, fez fortuna no Brasil. Cada trecho da construção, e de seus jardins, morro à cima, evoca significados alquímicos, como os da Maçonaria, Templários e Rosa- Cruz. Ali se misturam estilos da arquitetura romântica, gótica, renascentista e manuelina. Se o resultado é fascinante, no sentido de realização dos objetivos complexos do Barão , e na síntese harmônica que consegue apresentar o projeto de Manini é, no meu entendimento, uma obra de mau gosto, do ponto de vista de nossas concepções estéticas de hoje ; fascina, como conjunto, e concepção, tornando-se inesquecível, qualidade inerente ao extremamente belo e extremamente feio. No caso, não diria feio, mas extravagante. Foi o que senti. Gosto não se discute; senão, o que seria do amarelo?

Após a Quinta, conhecemos o Palácio de Montserrate, outra construção que me pareceu estranha, ainda que imponente e linda, reconheço. Quando o avistei, ocorreu-me que fosse uma construção árabe, transplantada para Portugal. Se tivessem me dito que foi construída por Ibn Saud, eu teria acreditado. Na verdade foi mandado construir por um dos homens mais ricos da Inglaterra, Francis Cook , e durante muitos anos serviu de residência de verão para a sua família. Lord Byron, o grande poeta romântico inglês, esteve ali hospedado, e nele se inspirou para fazer um dos seus poemas.

A construção é ultra requintada, com incríveis detalhes. Apesar de seu estilo romântico e neo-árabe, tem algo de indiano também. Aliás, há uma peça indiana autentica, logo na entrada. Poderia ter sido construída por ordem de um Marajá... Não nos esqueçamos que grande parte da Índia professava o islamismo, na região que hoje é o Paquistão. Mas, independentemente da questão de gosto, é uma obra suntuosa, e vale a penas ser visitada, por ser muito bela e requintada. Mas é nos jardins, a meu ver, que está a genialidade da concepção. É impossível existir algo de mais belo. Fiquei sem fôlego ao admirá-lo. Indescritível. Só vendo mesmo. Não tenho palavras para descrevê-los, a não ser dizendo que têm algo de mágico. E é feito de tal modo, com tal combinação de árvores aromáticas, que maravilhosos perfumes naturais se misturam na dose certa. Nunca respirei um ar assim.

Finalmente há o Castelo dos Mouros. Trata-se de um castelo em ruínas situado no meio das florestas exuberantes da Serra de Sintra. Foi construído pelos mouros norte africanos durante o séc.IX para proteger a cidade , e abandonado depois da reconquista cristã. Atingido pelo terremoto que praticamente destruiu Lisboa no século XVIII, foi restaurado com características bem diversas no século XIX pelo Rei Fernando II. Continua, apesar de tudo, imperando do alto da montanha. Partes de suas ruínas derivadas da construção original permanecem.

As antigas construções mouriscas me emocionam muito. Terei sido um mouro numa antiga encarnação? Porque minha identificação tão forte com eles, em tantos aspectos? São as tais perguntas sem respostas...os mistérios...por que amamos ou deixamos de amar alguém? Por que, mesmo amando, não somos mais amados?

A presença moura na Peninsula Ibérica é para mim algo de muito significativo e considero a sua influência em nossa cultura luso-brasileira muito subestimada. E isto por uma razão muito simples: a civilização árabe e islâmica, era muito mais culta, refinada e cientificamente mais avançada que os Ocidentais da Idade Média. Sua contribuiçaõ nas tecnicas agrícolas , por exemplo, representou notável progresso no cultivo alimentar , e sem os seus conhecimentos na arte da navegação, Portugal teria ficado muito mais tempo incapaz de enfrentar a grandeza e obstáculos dos oceanos. Foram importantes também no campo da engenharia, da arquitetura, das técnicas de construção e da cultura em geral, principalmente no da música. Portanto, não fosse a influência da cultura árabe, talvez fosse outra a história dos Descobrimentos e suas consequencias para o mundo. Além disso, a tradução dos textos clássicos gregos e latinos possibilitou a recuperação dessas obras para a Europa renascentista, após muitas delas terem se perdido na Alta Idade Média. Consequentemente Portugal beneficiou-se destes conhecimentos.

De volta ao centro de Sintra , fomos conhecer a famosa pastelaria Periquita e provar os seus famosos pastéis doces. Uma iguaria.

Com a ida a Sintra terminou a primeira etapa de nossa viagem, a grande Lisboa. Dali partiríamos para Tomar, já no percurso para o Porto.

De Lisboa ficou-me a impressão primeira de todas as cidades européias. Tudo limpo, bem tratado, organizado.

Achei as mulheres mais para tensas, fechadas. Fumam muito, o que me causou estranheza, porque no Brasil a grande maioria perdeu este hábito há tempo. Engraçado como as coisas mudam: antes, fumar dava “glamour”, agora é o contrário.

Lisboa é uma Cidade voltada para o turismo e a população é correta para com aqueles que a visitam. Nós brasileiros, se puxarmos conversa, conseguimos uma boa troca de idéias. Claro que tudo isso corresponde a uma impressão superficial, mais epidérmica. Se mergulharmos um pouco naquela realidade, fica patente uma distância bem acentuada entre as gerações; não nos esqueçamos que até a Revolução dos Cravos ( 1974) Portugal viveu, desde 1926, numa ditadura militar muito conservadora e após Salazar (1932), num regime fascista extremamente retrógrado, mas que teve forte apoio de grande parte da população. O desgaste começou com a luta contra a libertação de Moçambique, Guiné-Bissau e Angola, gerando, além de outros fatores, a decadência econômica, com amplos reflexos na sociedade. Tudo indica – e aqui falo de uma impressão pessoal – que houve acentuado conflito de gerações. Os mais jovens buscavam uma visão mais ampla do mundo, uma superação de certo atraso inculcado pelo regime salazarista. Além disso, as limitações do país, em termos de oferta de trabalho , forçou a emigração dos jovens, com profundas conseqüências na sociedade. Estima-se que algo em torno de quase cinco milhões de portugueses estão espalhados pelo mundo, ou seja, praticamente a metade de sua população está no exterior.

Percebi uma angústia latente nos jovens com os quais conversei, ameaçados pela falta de perspectivas. Não se trata de um fenômeno tipicamente português, é claro, mas, dadas as limitações do País, se intensifica. O uso de entorpecentes é de um dos maiores problemas dessa juventude, segundo aferi.

7 de junho

Óbidos

Fomos à Locadora buscar o carro para pegarmos nossa filha e a bagagem no apartamento , para depois seguirmos para Óbidos.

Minha mulher dirigiu, pois a minha vista ainda me incomodava bem. Posto o endereço no GPS, lá fomos nós. Ao nervosismo natural de dirigir um carro com o qual não estava habituada , um Meriva a Diesel, numa cidade desconhecida, do ponto de vista do trânsito, acrescentou-se o fato de que o GPS não conseguiu logo se conectar ao satélite, o que nos fez navegar no escuro. Uma vez conectado, ele de vez em quando mudava de trajeto por alguma razão de transito ou outra qualquer e então recalculava tudo de novo. A voz feminina do aparelho dizia: “recalculando, recalculando” e enquanto isso nos deixava dando voltas. Quando tudo parecia normalizado, porque as ruas foram tomando um ar já conhecido, caímos na Feira da Ladra, situada um pouco acima de onde estávamos hospedados. Mas desta vez, quando desviamos da Feira, o aparelho nos recolocou na opção certa e finalmente chegamos, ainda que tendo levado mais de uma hora para um percurso que em condições normais não duraria mais de vinte minutos. Mas valeu a experiência. Percebemos que em qualquer circunstância o GPS, independente das orientações verbais, indica um mapa do percurso, e então é melhor esquecer da orientação verbal e seguir o mapa. É o que acontece quando perde o sinal. Posta as malas no carro e com a filha ao nosso lado, nos sentimos mais tranqüilos, pois nossa preocupação era o que ela estava sentindo com o nosso atraso, estando sem dinheiro e sem passaporte ( erroneamente esquecera de pegá-los com a mãe). Então, lá fomos nós! A viagem foi tranqüila, percorrendo de noventa a cem quilômetros por hora em média. A qualidade das estradas nacionais é excelente , como em toda a Europa. Pode-se viajar a cento e vinte, mas muitos carros, pelo que vimos, chegam a cento e cinqüenta. Fizemos a viagem em cerca de hora, mais ou menos. Paisagens lindas, espaços mais abertos à medida que nos afastávamos de Lisboa. Mas não se via nem gente nem animais, o que me deixou com uma sensação estranha. Parecia que estava viajando num país desabitado.

Chegamos e nos instalamos num apartamento muito agradável. A vista da janela causou-nos um choque. É como se tivéssemos viajado no tempo. Dava para o conjunto da parte antiga e o castelo , algo que nunca vimos. A vila, tudo bem, é de um barroco que nos remete a uma cidadezinha de Minas, ou de Goiás, parecida com aquela onde viveu uma das minhas poetisas preferidas, a Cora Coralina. O castelo, ou fortaleza, logo acima, foi uma surpresa impactante e surpreendente. Acredita-se que, dadas algumas de suas características, tenha sido reformado pelos mouros, lá pela altura do século XII. Mas é muito mais antigo.

Como saímos bem mais tarde de Lisboa que o previsto, lá pelas tantas bateu a fome. Então a primeira coisa que fizemos foi procurar onde almoçar. Indicaram-nos a Nova Casa do Ramiro. Ambiente extremamente agradável, casando com o espírito barroco da cidadezinha, belas peças em prataria e madeira. A comida é de primeira qualidade, e o vinho, nem se fala. O proprietário nos apresentou à esposa, uma bela e muito simpática brasileira.

À tarde passeamos pela Vila e o Castelo. Fiquei ali nas muralhas observando a construção e imaginando os homens do deserto saboreando aqueles montes verdejantes, que ondulam no horizonte; não sei por que, ocorreu-me a sensação que deve ter sentido o João Ramalho quando, após subir a serra, levado pelos índios, se deparou com os vastos campos de Piratininga.

A vila, aos pés do Castelo, lembrou-me momentos de minha juventude quando viajava muito para as Cidades barrocas de Minas. Há um pequeno comércio onde se destacavam lindas toalhas bordadas à mão.

A Vila e o Castelo á noite compõem um cenário que parece cinematográfico. Dormi pensando como a ação de uma facção de visigodos em guerra tribal pedindo socorro aos mouros do Norte da África levaria Tariq Ibn Ziad a atravessar o estreito de Gibraltar e adentrar pela Península Ibérica. Dera-se o início, em 711, à Invasão islâmica . Não imaginavam aqueles visigodos que daquilo tudo resultaria o que depois os islâmicos chamariam de Al Andaluz, parte de um império que, na Península Ibérica, durou mais de oitocentos anos e que abrangia o Norte da África, parte da Europa e da Ásia. Esta história confirma que às vezes uma pequena ação transforma o mundo. Não creio, por exemplo, que Gravilo Princip , o sérvio que assassinou o Arquiduque Francisco Fernando do Império Austro –Húngaro tivesse consciência que estava sendo o estopim para a deflagração da Primeira Guerra Mundial.

No dia seguinte, dia 8, visitamos Al Cobaça e Nazareth.

Tudo sugere que a origem da palavra venha do árabe Al Kobaxa, que quer dizer “carneiros”. Mas há um entendimento diverso, interessante: na região passam os rios Alcoa e Baça, e o nome Alcobaça seria uma síntese dos dois. Na verdade, ninguém sabe.

Quando Afonso Henriques, o fundador de Portugal, digamos assim, doou aos monges Cistercienses em 1153 as terras de Alcobaça, exigindo deles, em contrapartida, o seu loteamento, a região já era ocupada, mas tudo indica que não havia povoado algum, até porque o objeto da doação, em suma, era este. .

O grande atrativo da cidade é o Mosteiro de Santa Maria, obra grandiosa, em cuja Igreja, estão enterrados D.Pedro I de Portugal, chamado o Cru , e sua amante Inês de Castro, aquela que , segundo Camões, “depois de morta foi rainha” , assassinada por razões políticas por ordem do Rei seu pai , Afonso Quinto. D.Pedro mandou construir dois túmulos magníficos , para ele e Dona Inês, para onde trasladou o corpo de sua amada por volta de 1352, provavelmente. Os túmulos estavam lado a lado, os pés virados para o nascente. Com a construção do Panteão Real, no mesmo conjunto arquitetônico, no século XVIII, D.Pedro e D.Inês foram colocados um ao lado do outro. Na reconstrução da Igreja, no século dezoito, foram colocados um diante do outro, e em 1956 foram novamente mudados para a sua posição atual, D. Pedro no transepto sul e D, Inês no transepto norte, para que, segundo consta , possam “olhar-se nos olhos, no dia do Juízo Final”.

Estas mudanças de posições demonstram, a meu ver, a dificuldade de se encontrar uma posição ideal para uma paixão tão forte.

Sem dar detalhes, a morte de D.Inês deve-se, em grande parte, à velha rivalidade entre Portugal e Castela. Sua família , era de nobres castelhanos, e temia-se que D.Pedro se casasse secretamente com a sua amante, já que enviuvou de sua rainha, D. Costância, morta no parto daquele que viria a ser o Rei D. Fernando I.

É impossível visitar Al Cobaça e não ser envolvido nesta história de paixão desesperada. Mas antes de tudo, revela aquilo que em profundidade chamo de alma portuguesa, ainda que numa fase anterior que a atual, dada a diferença de circunstâncias, de cultura e de tempo; tudo isto se passou no século XIV, e de lá para cá, as coisas mudaram, naturalmente. Mas a paixão, tão cantada nos fados, o ardor e os sentimentos exaltados, persistem. Para se ter uma idéia de como eram as coisas naquela época , D.Pedro, ao assumir o trono, após a morte de seu pai, mandou, segundo consta, e pode ser lenda, desenterrar o corpo da mulher e entronizá-la como Rainha, mandando a Corte, que tanto a hostilizara, beijar-lhe as mãos decompostas. E aos que a assassinaram, escondidos em Castela , homiziados pelo Rei D.Pedro, o cruel, primo e homônimo do rei português, este propôs ao castelhano um trato, quebrando os juramentos que fizera ao pai de perdoar os assassinos de Inês, que por sua ordem agiram: pelo acordo, entregava vários castelhanos homiziados em Portugal ao primo Castelhano que , por sua vez lhe entregava os três assassinos. O trato, quebrando tradições, foi feito. Grave quebra, porque a lei de homizio era sagrada na época, o que deixou sequelas para os dois lados, que em sua sede de vingança, passaram por cima de tratados, costumes e juramentos. Dos três homiziados em Castela, um logrou fugir porque fora avisado; já os outros dois, segundo o relator destes fatos, Fernão Lopes, foram “ bem presos e amarrados”, entregues ao Rei que os condenou à morte , mandando arrancar o coração de um pelos peitos e de outro pelas espáduas, ainda conforme o relato. Os castelhanos entregues ao primo Pedro foram mortos com requintes de crueldade. Assim eram aqueles tempos, e vendo aqueles túmulos naquele ambiente colossal não pude deixar de pensar nisto tudo e concluir que não mudamos muito: a paixões ainda levam à destruição dos homens pelos homens, ainda que sejam, na maioria outras.

8 de junho

Nazaré

Partindo de Óbidos , fomos à Nazaré, a famosa praia do surf, de ondas que atingem 25 metros e mais, onde houve aquele acidente com a Maya Gabeira, nossa querida e famosa surfista. Mais uma vez o tal do GPS fez das suas. Levamos algum tempo em idas e vindas, enquanto ele recalculava. Finalmente, me lembrei do Waze, e pedi à minha filha que o baixasse no seu I Phone. Daí em diante, dispomos de dois navegadores, e correu tudo bem.

A praia de Nazaret me decepcionou um pouco. Primeiro, não havia ondas surfáveis nesta época do ano; segundo, as areias são amareladas e mais para grossas; terceiro, a paisagem é bela, simplesmente, mas não excepcional.

Na praia só havia uma mulher, e uma criança .

Soprava um vento mais para frio, constante. Lembrei-me das praias cearenses que, apesar das águas de temperatura bem mais quentes, me foram desagradáveis porque os Alísios sopravam sem parar noite e dia. Aquela criança que brincava sozinha na areia, enquanto a mãe permanecia quieta na barraca, de costas para a orla, compôs, aos meus olhos, um quadro bem triste.Uma estranha solidão naquela praia vazia, ressoando em mim...

Da praia fomos para a Vila de Nazaré. Cidadezinha simpática, provavelmente uma antiga vila de pescadores, hoje mais turística, uma vez que sua praia é mundialmente conhecida. Alguns prédios de apartamentos, muitos vazios. Mas guarda ainda, entre as novas construções, casas bem antigas, o que acrescenta algo ao seu charme.

Comemos num restaurante simples um peixe bem gostoso.

Depois do almoço voltamos para Óbidos, sem visitar o Santuário de Nazaré, acho que por cansaço. Uma perda de oportunidade, uma pena. Relembrando o fato com minha mulher, ela me disse que fui eu quem deu para trás. Reconheço que sofro destes repentes...

À tarde, nova visita à Vila e ao Castelo. Minha mulher e filha escarafuncharam as lojas.

Quando voltamos, quase escurecia. Estava bem cansado, porque em Portugal nesta época escurece às nove da noite, e o dia clareia muito cedo, lá pelas cinco, senão me engano. Como sou como os passarinhos, durmo e acordo cedo, tenho sentido a longa duração dos dias.

9 de junho

Fátima

De Óbidos fomos dia 9 pela manhã para Fátima. Lá se encontra o famoso Santuário , que impressiona pela grandeza e simplicidade.

Foi-me impossível chegar àquele local e logo não ser tomado pela emoção. Imaginar que ali aparecera Maria de certa forma me desconsertou. Uma energia intensa e incomum emana daquele lugar sagrado. Talvez só sentisse algo de parecido se fosse ao Gólgota , aquele alto onde Jesus foi crucificado. A “Santa Maria, Mãe de Deus” a quem invocamos em nossas orações para nos proteger “agora e na hora de nossa morte” está mais presente em meu coração do que parece. Imaginar que ali esteve o seu espírito luminoso! Fiquei tomado por aquela presença...

A lembrança daquelas três crianças, duas meninas e um menino - Lúcia ( dez anos) , Jacinta ( sete anos) e Francisco( dez anos) que viram e testemunharam sobre as aparições de um Anjo (1916) e, posteriormente, de Nossa Senhora (1917) , se impôs a mim. Dei-me conta da experiência íntima que os marcou de modo inelutável, um encontro de uma intensidade psíquica única, tal a plenitude alcançada por seus seres interiores, por suas almas; e ocorreu-me também a pressão social, positiva e negativa, quase insuportável , que sofreram. Quando vi o retrato daqueles camponesinhos, crianças tão simples e inocentes , ligadas a algo tão extraodinário , quase fui às lágrimas: vidas foram marcadas por fatos absolutamente fora do comum, muito além da compreensão humana!

Não me preocupo agora, que relembro esta visita, com o que dizem e pensam os céticos , tomados pela descrença. Muitos acham que o que ocorreu ali foi um processo de histeria, individual ou coletiva , ou algo parecido, mas antes de tudo, sintomas de uma coletividade atrasada e inculta. Outros, negando uma fé por outra, entendem que ali se manifestou um ser alienígena, tão ao gosto de nossa época, repetindo aparições ocorridas pelos tempos afora, em outras terras e civilizações. Não, não me preocupo em encontrar explicações, ou algo que concilie esta situação com o chamado plausível; para mim não é por aí, pois mesmo não sendo plausível é, posto que fato indiscutível. O fenômeno ocorreu, e por isto se coloca como um desafio. As Aparições e Mensagens aconteceram mesmo, apenas não se situam em nosso nível normal de compreensão, pois são do domínio do Mistério, domínio de outra dimensão que de muito nos ultrapassam: dimensão só acessível aos simples, como eram aquelas crianças, que de imediato, se entregaram totalmente às experiências intensíssimas que viveram - a dimensão da Fé mais simples , da Fé que não exige explicações, da Fé dos pescadores que por ela foram transformados em Apóstolos de Cristo, da Fé que remove montanhas e alimenta os milagres, tantas vezes ocorridos.

Será que estou sendo capaz de traduzir, ainda que de modo limitado o que se passou em mim naquele lugar de santidade e peregrinação?

Não freqüento a Igreja há muitos anos. Sinto a religiosidade como um sentimento que se vive além de qualquer igreja ou seita. Um sentimento de quem acredita em Deus , no Criador dos Universos visíveis e invisíveis, e que todos somos seus filhos, irmanados por sermos todos criaturas Dele. Mas o fato de ter uma visão assim tão simples, ou mesmo talvez por força dela, não me impediu de sentir a energia daquele lugar – pelo contrário – senti intensamente a força de congregação que ele exerce, e a luz reveladora que dele emana. Acredito que em grande parte seja porque ali predomina o Feminino, a força da Grande Intercessora, a Força da Mãe que por nós intercede junto ao Pai. Aliás, nesse sentido, considero a Igreja Católica única, pois reconhece, no culto à Maria, uma necessidade muito profunda do ser humano, e que se fundamenta na necessidade do amor da Mãe em relação aos seus filhos. Não são órfãos os que se colocam sob suas as suas asas protetoras.

Sei que ali é um local de orações pela redenção dos pecados e que de joelhos nos entregamos, solidários ao seu pedido, à infinita bondade de Maria, a Maria do Rosário, como ela mesma se chamou, e que passou a ser conhecida como Maria do Rosário de Fátima. Mas ali também é o local dos desesperançados, dos perdidos, dos aleijados, no corpo e no espírito, que vêm , muitas vezes caminhando de joelhos, implorar pela cura, de si mesmos ou dos seres que mais amam.

Saí de Fátima, de volta a Óbidos , tomado por estes sentimentos e, diria, energizado pela “Senhora vestida de branco, luminosa como um cristal” translúcido, como aquelas crianças a descreveram, lembrando-me que a Ela fui dedicado por meus pais, que acrescentaram o nome de Maria ao meu próprio nome.

10 de junho

Tomar

Tomar me surpreendeu: cidade moderna, cheia de charme, com um belo parque atravessado pelo rio Labão, de águas claras, limpas e convidativas. Enquanto fazia meu passeio na margem do rio, vários jovens se banhavam e um sujeito mais afoito pulou de uma das pontes, exibindo um belo mergulho.

Minha motivação para ir a Tomar foi o famoso Convento de Cristo e a Fortaleza adjacente. É um conjunto medieval implantado no alto de uma colina que se eleva sobre a Cidade , circundado pelas muralhas do Castelo e pela chamada Mata da Cerca. Inicialmente foi construído no início do século XII, por ordem do Grão Mestre dos Templários em Portugal, D.Gualdim Pais, em 1160, e ocupado por estes monges cavaleiros por quase duzentos anos; posteriormente, por seus sucessores em Portugal, a Ordem de Cristo, cujo Grão Mestre foi o Infante D.Henrique.

Várias modificações e acréscimos foram feitos através dos anos, alterando o estilo original, influenciado pelo estilo oriental que os Templários trouxeram do Oriente, acrescidos, nos períodos posteriores, por aspectos da arquitetura gótica, manuelina, renascentista, barroca e romântica. É uma obra monumental e impressionante.

Diante dela imediatamente evoquei os Templários, aqueles monges cavaleiros cuja ordem foi instituída por Hugo de Payens em 1118, com o apoio do rei Balduino II, de Jerusalém, após a realização da Primeira Cruzada. A finalidade da Ordem, segundo seus estatutos, elaborados por São Bernardo, o maior orador cristão da época, era a de proteger os peregrinos que se dirigiam a Jerusalém, vítimas de assaltos em todo o percurso e dos ataques dos muçulmanos que combatiam os reinos cristãos no Oriente. O Castelo de Tomar, tão longe da Palestina, mostra como a ordem se expandiu em toda a Europa, e como se enriqueceu, dadas as isenções recebidas e à acuidade de seus dirigentes. Além disso, em 1139, o Papa Inocêncio II emitiu uma bula papal declarando que os Templários não deviam obediência a nenhum poder secular ou eclesiástico, apenas ao próprio Papa. Numa época em que os reis já começavam a sonhar com maior poder, a bula papal não caiu bem.

Tornando-se rica, influente e soberana, a Ordem foi despertando a reação do poder real e a inveja e a cobiça dos poderosos aos quais emprestava dinheiro. A atividade financeira da ordem era intensa e inovadora, constituindo-se numa pioneira de várias práticas bancárias modernas.

Felipe IV, o Belo, de França, foi um destes devedores e acabou pressionando o Papa Clemente V para extinguir a Ordem, acusando-a de práticas de bruxaria. O Contato que os Templários tiveram com os islâmicos, e os detentores de seus conhecimentos ocultos, os sufis , deram, principalmente a seus líderes mais esclarecidos, uma visão religiosa mais ampla, menos dogmática que a da época. Isto, de certo modo, facilitou as acusações malévolas do Rei, pois havia inimigos ocultos dentro da própria Igreja. O que Felipe visava era , de um lado, apoderar-se dos bens e livrar-se das dívidas que tinha para com a Ordem e, de outro, extirpar de uma vez o seu poder. Anteriormente manifestara à Ordem vontade de nela ingressar. Os fatos posteriores evidenciam que se tratava de um ardil: como um Rei faria voto de pobreza e se colocaria, numa vida comunitária, sob as ordens de um Grão mestre, anão ser tornando-se, por sua condição real o próprio Grão Meste? E, tendo o sentimento de admiração pela Ordem, ao ponto dela querer fazer parte, como poderia agir como agiu, de maneira tão pusilânime?Tendo sido obviamente negado o seu ingresso, voltou-se contra a Ordem, adotando a postura de que se apossaria de seus bens, de um jeito ou e outro. A ele juntaram-se os interesses de outros reis e nobres, que viam nos exércitos da Ordem e a sua independência como uma ameaça potencial constante. A ação brutal e iníqua de Felipe contra os Templários e a subserviência do Papa Clemente V, que contra a sua consciência fez o jogo do Rei, valeu-lhes uma terrível maldição: Jacques de Molay , ultimo Grão Mestre da Ordem, condenado a morrer na fogueira e cuja sentença foi executada numa sexta-feira 13 (março de 1314), convocou, antes de começar a arder, o Rei e o Papa a comparecerem com ele, dentro de um ano, perante o tribunal de Deus para um julgamento final . E assim ocorreu. Naquele mesmo ano ambos, Rei e Papa morreram. Felipe foi vítima de um acidente cerebral durante uma caçada, vindo a falecer num segundo ataque em 29 de novembro de 1314, pouco mais de nove meses da morte de Molay; o Papa Clemente, em 20 de abril de 1314, de uma infecção generalizada , portanto pouco mais de um mês da convocação profetizada pelo Grão Mestre. Esta história sempre me impressionou, e diante das ruínas do Castelo veio à minha lembrança.

Mas Tomar viveu também no século XIV uma situação singular: foi para esta Cidade que seguiu D.Nuno Alvares Pereira , o famoso Condestável de Portugal, por ocasião da iminente invasão castelhana, na significativa crise porque passou Portugal nos anos de 1385 a 1388, e cujo desfecho foi de grande importância para a consolidação do País que vinha se afirmando nos dois séculos anteriores.

Sentindo-se isolado e contrariado com os cortesões, certos generais e o próprio Rei D. João I, o Mestre de Avis, D,Nuno retirou-se para Tomar com suas tropas, disposto, a qualquer custo, em confronto direto, barrar a invasão Castelhana, que se fosse vitoriosa, teria como conseqüência a anexação de Portugal por Castela.

Na verdade Portugal e Castela vinham se digladiando, um desejando a Coroa do outro, alimentando ambições baseadas em argumentos dinásticos, fáceis de encontrar, porque os reis da Península Ibérica eram aparentados, tendo ancestrais comuns.

No final de uma dessas guerras, em que ninguém ganhava totalmente de ninguém, ocorreu, em 1382 , um tratado que previa o casamento da única filha legítima de D. Fernando I, Dona Beatriz, com o Rei D.João I de Castela. Este acordo não foi bem recebido por parte da Corte portuguesa , que se dividiu a respeito, e por amplos setores da classe média e populares, porque representava, via casamento, a anexação de Portugal a Castela. Mas havia também o ódio que muitos nutriam pela Rainha, D.Leonor Teles , que exercia enorme influência sobre o Rei, apoiando a idéia da União das Coroas. E para complicar ainda mais muitos contestavam o comportamento discutível da soberana, uma vez que sua relação amorosa com o Conde de Andeiro, galego, também a favor da União, era pública e notória.

Quando morre D. Fernando, em 1383, a dinastia de Borgonha ou Alfonsina chega ao fim.

D. Leonor Teles é nomeada regente em nome da filha e de D. João de Castela. Esta decisão feriu os brios de grande parte de Portugal. Respondendo aos apelos dos Portugueses para manter o país independente, inclusive do amigo D.Nuno , que aliás odiava a Regente, D. João , irmão bastardo de D. Fernando, é aclamado pelos seus apoiadores como Rei de Portugal. D.João, seu primo e homônimo, Rei de Castela se opõe a este movimento , e em nome de seus direitos previstos no Tratado de 1382, decide invadir Portugal, deflagrando a guerra. Instala-se um clima de grande instabilidade, conhecido como a crise de 1385 a 1388. Ao aclamar o Mestre de avis Rei de Portugal, ocorreu de fato uma revolução, uma vez que o Rei assume o Poder no bojo de um movimento de afirmação popular que já se pode considerar como Nacional.

Pois bem, é neste contexto que ocorrem os fatos que vou relatar, significativo para a compreensão da grande figura guerreira de Nuno Alvares Pereira e de seu amigo, o Rei D.João I.

Ambos eram líderes, de forte personalidade, e ligados por uma sólida amizade que veio da adolescência e que perdurou, apesar das dificuldades, por toda as suas vidas. Lembra um pouco, no sentido mais simbólico, a amizade do lendário Rei Artur com Lancelot.

Quando se soube que Castela marchava contra Portugal, duas correntes se manifestaram claramente no Conselho Real: uma, face à grande superioridade numérica dos castelhanos, achava que se devia atacar Sevilha para obrigar os castelhanos a recuarem para defender o próprio território. Seria uma guerra de guerrilhas , fustigante, que manteria o inimigo ocupado em sua defesa. Outra, defendida por D.Nuno e mais uns poucos, afirmava que se deveria fazer uma guerra frontal, que barrasse de uma vez por todas as veleidades de Castela e suas ambições de dominar Portugal. Na verdade, a tese das guerrilhas disfarçava o temor de um adversário muito mais forte. Tinha o seu lado positivo , mas continuava aquela tradição de escaramuças em que ninguém vencia ninguém, e tornava impossível uma vitória decisiva sobre Castela. O prolongamento da guerra possibilitava , em tese, a tomada de Lisboa, caso os castelhanos suportassem a sangria da guerrilha. A decisão desta corrente foi tomada na ausência de D. Nuno e contrariava a sua tese de guerra total , já decidida numa reunião anterior do Conselho havida em Guimarães. Para D.Nuno, Lisboa não poderia sofrer qualquer risco; na defesa de Lisboa era imperioso lutarem para viver ou morrer, porque “perdendo-se Lisboa, perde-se tudo”, como dissera na Reunião. Aos seus olhos , a guerra de guerrilhas aumentava este risco, dada a superioridade do exercito de Castela em número de combatentes, três vezes maior que o dos portugueses.Isto possibilitava a luta em duas frentes.

Quando o Rei, que na reunião de Guimarães aderira à tese de D,Nuno, mudando de posição depois, explicou, em nova Reunião, que os planos mudaram, recebeu a seguinte resposta de D.Nuno , na bucha , como se diz, na frente de todos:

“...Se vós agora mudais de seu bom propósito e ele vos quiser seguir à vontade , pode fazer o que Sua Mêrce for, mas nunca me entendo de mudar do meu; e daqui em diante, fazei como quiserdes, mas que eu não cuido mais disto falar...”

Na manhã seguinte, após as duas missas que sempre ouvia, mandou juntar seus homens e seguiu para Tomar, o caminho mais curto para barrar os invasores. Imaginei a Cidade hospedando as suas tropas, e o sentimento do seu povo face à guerra inevitável.

È fácil de imaginar que muitas intrigas foram feitas junto ao Rei, que se sentiu afrontado na tal Reunião. Como sempre , um homem com os dotes militares de D.Nuno e , por consequência, de alta relevância junto à Coroa, era muito invejado.

Mas D, João sabia que não podia abrir mão de seu Condestável . Apesar de ser ainda muito jovem, D.Nuno já provara que uma guerra com ele era uma coisa, sem ele, outra. Artur lutaria sem Lancelot, podendo dispor dele? De forma alguma. A mesma coisa ocorreu com D.João I. Revelando um aspecto de grandeza de sua personalidade , e grande senso prático, na reunião seguinte do Conselho Real D.João voltou a defender a tese de guerra frontal.Mandou chamar, outra vez, o Condestável para fazer os planos. Sua resposta ao Mensageiro do Rei foi a seguinte:

“Dizei ao al Rei meu Senhor que não sou homem de muitos conselhos, pois já por uma vez foi determinado, como ele bem sabe, não deixar passar el- Rei de Castela e todavia lhe dar batalha, que eu desta intenção não entendo mudar, nem tornarei um pé atrás; mas dizei-lhe que lhe peço por mercê, que me deixe ir no meu caminho que eu com estes poucos e bons portugueses que comigo vão entendo dar-lha. E se Sua Mercê for de ir para lá, me mande dizer e aguardá - lo-ei em Tomar”.

Como se vê, D.Nuno não esquecera o que possivelmente considerava no mínimo uma fraqueza do Rei. Dera um duro recado.

O Rei foi para Tomar. E juntos venceram os castelhanos na batalha de Aljubarrota, que uma vez por todas provou serem os portugueses , em sua terra, inexpugnáveis.

Depois de lembrar-me disto tudo, vi Tomar com outros olhos. Dali Portugal saiu, de certa forma, do ambiente medieval para a Idade Moderna.

E considerando a absoluta falta de grandeza de nossos governantes no Brasil, senti-me ao mesmo tempo envergonhado e esperançoso. Quem sabe um dia teremos líderes desta cepa, mesmo considerando que os tempos são outros? Afinal de contas, ainda que muito distantes, somos herdeiros deles...

É este sentimento que me despertou Tomar.

Todos os locais do mundo têm a sua história. O que impressiona em Portugal, e também senti isto quando visitei a Espanha, onde a presença dos antigos romanos é mais corrente do que em Portugal, é a ocorrência de testemunhos de várias épocas num mesmo local ou muito próximas. Por ser muito pequeno, e pouco ter mudado suas fronteiras durante todos estes séculos , quase todas as cidades são relevantes para a formação da história nacional. Cada uma tem uma história a contar.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 10/08/2016
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