VIAGEM A PORTUGAL - ÂMBITO DO PÔRTO

11 de junho.

Talasnal.

Viagem agradável, de Tomar a Lousã. Lindas paisagens, agora bem interioranas. Espanto-me por não ver nem gado, nem cavalos. Uma coisa estranha, para nós brasileiros, dá uma impressão de ermo, apesar da beleza.

Chegamos à Vila de Lousã , no Distrito de Coimbra, já de tarde. E dalí subimos a serra em direção a Talasnal, uma das aldeias de xisto da região.

A subida da serra por estrada estreita lembrou-me as viagens à Fazenda, em Trajano de Moraes, RJ. Um ponta de saudade , até porque a paisagem é muito parecida. Imagino que subir esta serra no inverno, não deve ser mole.

Sabe-se que a ocupação humana é muito antiga, mas não consegui uma informação precisa da idade das casas. Tudo indica que remontam à Idade Média. Em meados do século XX verificou-se um movimento de emigração, principalmente para o Brasil. Dali em diante as habitações foram relegadas ao abandono. Talasnal virou uma vila fantasma. Apenas nas duas últimas décadas recomeçou a ocupação , agora visando o turismo e esportes como caminhadas e “montain bike”.

Hospedamo-nos numa das casinhas da vila, aliás muito bem recuperada. Teto muito baixo, paredes de pedra, pouco espaço, decoração simples e agradável. Janelas pequenas. Imaginei, dada a pouca altura das paredes, que as pessoas que ali viveram eram de estatura bem baixa.

À noite, em que éramos praticamente somente nós na aldeia, tivemos a real sensação de como deve ter sido viver naquelas condições de isolamento. Quando comprei a minha fazenda lá na região chamada de Tirol, em Trajano, também foi assim: os colonos, de origem suíça, eram cabeludos e barbudos; não havia luz; e à noite fazia frio. Mas, talvez por ser um vale mais apertado do que o nosso, tive a impressão de que a solidão em Talasnal ainda era maior. Na verdade só uma pessoa mora na vila. Talvez seja também porque estávamos muito longe de nossas bandas, quem sabe? Um estranho sentimento no peito.

Mantivemos um bom diálogo com os donos da pousada, gente simples e trabalhadora. Aproveitamos para bater bons papos, e muito do que soube de Portugal foi através deles. Jamais esqueceremos uma cabra ao forno, com batatas assadas, que a dona da casa preparou para nós. Não consigo me lembrar do nome regional deste prato , mas foi um jantar inolvidável, regado a um vinho “da Casa”, mas de alta qualidade. De madrugada não ouvi nenhum galo cantar. O que aumentou a minha impressão de que realmente era um lugar desabitado.

Entendemos minha mulher eu, que para se conhecer uma terra tem que se ir ao seu interior. As cidades, dada a sua natureza cosmopolita, escondem muito o caráter de um povo. Mesmo com a globalização, os lugares mais remotos e considerados mais atrasados revelam algo da mentalidade original do povo. Alguém pode dizer que conhece o Brasil se não conhece Minas, ou Bahia? Ou o Paraná, ou Pernambuco? Só o Rio e São Paulo não revelam tudo. O Cosmopolitismo é uma face comum às cidades grandes. A mesma coisa com os outros países do mundo. Esta foi a nossa motivação quando fomos àquele recanto isolado de Portugal. Acrescentou muito ao nosso conhecimento intuitivo deste país que , em grande parte, nos formou, a nós, brasileiros – no que temos de melhor e pior... Tive a sensação de ter visitado um avô desconhecido, do qual muito ouvira falar, mas que não conhecera.

No dia 12 pela manhã fomos ao chamado Castelo de Lousã, originalmente denominado Castelo de Arouche, que fica no alto de um estreito contraforte da Serra de Lousã, na margem do rio Arouche. É uma construção muito antiga que vem provavelmente da época da ocupação romana da região. Destinava-se à fortificação da cidade de Arouche, mas sua existência documental data de 943, num contrato entre um moçárabe e um abade do Mosteiro de Lorvão. Neste documento Arouche é chamado de Arauz. Para quem não sabe, moçárabes eram os cristãos e judeus que adotaram a cultura árabe, inclusive a língua, mas não o islamismo.

O Castelo é relativamente pequeno, mas impressiona pela posição que ocupa e por suas linhas sóbrias que se tornam mais longas por ter sido edificado numa encosta. Na verdade interceptava qualquer tentativa de um indesejável de chegar a Lousã.

Abaixo do Castelo, às margens do rio Arouche , há uma pequena praia e uma construção moderna que combina bem com o ambiente, com serviços para os turistas.Minha mulher arriscou um banho naquelas águas límpidas e mais para frias. Sentia-se em casa.

De volta a Talasnal, almoçamos na pousada. À tarde, fomos passear a pé e caminhamos por uma das trilhas existentes na serra. Pudemos então observar a mata mais de perto, diferente das nossas, de vegetação muito mais diversificada. Muitas escarpas. Incidência de samambaias, o que indica acidez no solo. Vimos os rastos de javalis. À noitinha, enquanto esperávamos o jantar, eles apareceram no sopé da pousada. Era uma família - pai, mãe e dois filhotes. O macho, um bicho enorme, meio acinzentado, muito corpulento. O grupo chegou buscando comida. Mas ao menor ruído, espantaram-se. Eram realmente animais selvagens, extremamente ariscos.

13 a 17 de junho.

Porto.

Na saída de Lousã para pegarmos a estrada que vai ao Porto sofremos um pouco com as “rotundas” (rotatórias no Brasil), pois não coincidiam os termos usados pelo GPS com as estradas a serem tomadas. Talvez tenha sido uma dificuldade de linguagem, não sei; o que sei é que foi muito desagradável, mas finalmente deu tudo certo.

Meu filho B. veio do Canadá para se encontrar conosco. Foi uma farra danada.

A chamada capital do Norte é o berço de Portugal. Origina-se de um povoado celta, chamado pelos romanos de Portus Cale, que deu origem ao nome de Portugal.

Na antiguidade a região se dividia entre tribos celtas e talvez de visigodos , quando foi dominada pelos romanos, fazendo parte da chamada Lusitânia, que abrangia territórios de parte de Espanha e Portugal, e depois pelos mouros. Além da luta pela Reconquista e da formação do Condado Portucalense , creio que o fato mais pleno de conseqüências para Portugal foi o casamento que se realizou no Porto entre D.João I, de Avis, e Dona Filipa de Lancastre , filha do Duque de Lancaster. Este casamento fortaleceu a aproximação dos portugueses com ingleses, e que durou todos os séculos seguintes até hoje, e teve decisiva influência cultural sobre Portugal. Nuno Alvares Pereira recorreu às táticas inglesas de guerra , levando à vitoria sobre Castela.

Dois ramos de minha família se originam no Porto, sendo que um deles é muito antigo. Então, foi com olhos especiais que observei aquela Cidade. É como se a voz de meus antepassados ressoasse em meus ouvidos...

No Porto nasceu o Infante D.Henrique, o Navegador, da escola de Sagres, que revolucionou as técnicas de construção naval e de navegação, possibilitando a expansão marítima portuguesa.

Foi no Porto, e com forte apoio do seu povo, que as forças liberais lideradas por D.Pedro IV venceram o seu irmão absolutista D.Miguel. E numa de suas igrejas, a da Lapa, está o coração do Rei, por ele doado à Cidade por seu apoio e como sinal de gratidão de sua valorosa gente. Os seus restos mortais foram trasladados para o Brasil e repousam no Monumento à Independência, nas margens do rio Ipiranga, em São Paulo, onde D.Pedro proclamou a Independência do Brasil.

No Porto duas coisas nos foram notórias: a boa comida e vinhos e as vistas da cidade navegando no rio Douro. E evidentemente suas praças e, casarios e monumentos. Mas o mais significativo é a maneira de ser e a cortesia do povo, muito acolhedor.

A cidade soa diferente de Lisboa. Não sei bem como explicar, pois é uma questão subjetiva. O povo parece mais alegre, menos tenso, não sei bem como dizer. Talvez eu é que estivesse mais relaxado, até por causa da presença do meu filho, e tenha projetado nas pessoas este bom estado de espírito. Mas as mulheres são mais elegantes, de um modo geral , e muito belas. Mesmo a média do tipo físico difere. Os portuenses são mais para altos e alourados, o que pode ser associado, talvez, aos Suevos e Visigodos do Norte da Espanha, com os quais os antigos celtas devem ter se miscigenado na Alta Idade Média.

Num de nossos passeios pelo Porto aconteceu uma coisa engraçada. Existem dois trajetos de ônibus (comboio) para os que desejam rodar pela Cidade: a linha vermelha e a linha azul. Compramos tickets para os dois passeios. Num dia, trafegamos na linha vermelha , num ônibus vermelho. No dia seguinte, fomos para a linha azul. Como o passeio no dia anterior fora num ônibus vermelho, deduzimos que neste dia seria num ônibus azul. Só que o ônibus não chegava. Esperamos, esperamos, mudamos de ponto, perguntamos aos motoristas que paravam se ali era o ponto também do ônibus da linha azul, eles confirmavam, e começaram a surgir teorias para o atraso e assim foi indo. Quando estávamos a ponto de desistir do passeio ( ninguém agüentava mais as minhas reclamações, por que se há algo que detesto é esperar) surgiu um ônibus vermelho, ao qual não demos atenção. Só que minha filha, seja porque é observadora, seja por acaso, viu escrito na parte de baixo da frente do ônibus: “Linha Azul”. “ É ele, é ele “ ela gritou. Foi uma gargalhada só, sentimo-nos umas bestas, uns turistas idiotas, para dizer o mínimo. Mas o passeio foi lindo, e se não me falha a memória o ônibus parou, entre outros pontos, Vila Nova de Gaia, onde almoçamos. Comi um bacalhau de dar inveja, regado a vinho branco. Inesquecíveis, a furada e o almoço.

Recebi um telefonema de meu outro filho, o L., dizendo que o Gary, meu cachorro, morrera. Eu de certa forma já esperava, não só porque era velho, mas porque de vez em quando sofria de um acesso de convulsões. Tinha mais de dez anos, o que para um cão é idade avançada, então posso dizer que morreu de velhice. Senti a morte de meu cão, que gostava de fugir para a rua , a procurar cadelas . O pessoal de casa reclamava de suas fugidas. Eu brincava, cantando um velho sucesso no Brasil: “Um vagabundo como eu, também merece ser feliz”...”porque só quero desta vida, ter um amor somente meu”...

Lembro-me que ele apareceu lá em casa seguindo a minha jovem cunhada. Era um cãozinho de rua, serelepe, que foi logo entrando como se a casa fosse dele , dando um pulo no meu colo, agitado, abanando o rabinho. Jamais esquecerei do seu olhar naquele momento. Foi seu olhar que me conquistou na hora. Parecia dizer: “Querendo ou não querendo, sou seu!”. Como resistir?

Adeus, meu cão, meio feio, reconheço, mas de um “charme” incrível e de um coração inocente, e fiel, e amigo, capaz de um sentimento tão intenso que na humanidade não existe...Não o esquecerei, Querido.

Em minha imaginação o Tejo era mais estreito e o Douro mais largo. Mas em ambos os casos a beleza do rio e a ocupação das margens é belíssima, cada uma a seu modo. A de Lisboa, com amplos espaços modernos, a do Porto, mais antigos. A Ribeira é mais humana, menos planejada, como se fosse uma amostra de diferentes fases. O conjunto mexeu mais com a minha sensibilidade, talvez porque fui a Portugal mais à busca do passado, à busca de sua grandeza, origem de quem somos.

O que posso dizer do Porto? Gera algo de único. Como o seu famoso vinho. Difere.

16 de junho.

Amarante.

Não poderíamos deixar de dar um pulo a Amarante, a cidade fundada por São Gonçalo do Amarante, o santo que providencia o casamento das solteironas. Em Portugal, que durante muitos anos, tinha uma população de mulheres solteiras bem significativa , porque os homens emigravam cedo, e solteiros, deixando para trás as namoradas que os esperavam em vão, dizem que há dois Santos protetores das solteiras: Santo Antonio, que vela pelas mais novas e São Gonçalo, pelas mas velhas. A Cidade é famosa também por seus confeitos de forma fálica, inclusive no Brasil. Minha mulher, de brincadeira, trouxe alguns, para distribuir para algumas encalhadas. Servem para estimular a devoção pelo Santo. Dizem as singelas cantigas populares:

“São Gonçalo do Amarante,

Casamenteiro que sois,

Primeiro casais a mim;

As outras casais depois ”.

São Gonçalo ajudai-me,

De joelhos lhe imploro,

Fazei com que eu case logo,

Com aquele que adoro”.

Foi a chegada de Gonçalo (1187-1259) que chamou a atenção para a pequena e antiga vila onde hoje se localiza a Cidade. Nascido em Guimarães, este nobre que a tudo renunciou para se dedicar à Caridade, ergueu uma pequena ermida em homenagem a Nossa Senhora de Assunção, no local onde se encontra a Igreja e o Convento. Pretendia viver como eremita. Vinha de longas viagens, pois fizera uma peregrinação a Roma e Jerusalém. Mas tudo indica que sua necessidade de recolhimento foi apenas para refazer as forças, pois logo começou a atuar junto à pequena comunidade, dando-lhes assistência pessoal e espiritual. Liderou-o povo na construção a velha ponte sobre o rio Tâmega, que isolava a população nos períodos de cheia. Mas sua principal ação era sobre o espírito dos homens, reconciliando os inimigos e estimulando ao matrimônio, tirando os homens “do mau caminho”. Sua alegria era contagiante, promovia festas , encontros, tocava instrumentos musicais e estimulava a formação de conjuntos para atuarem nos bailes. Dizem que dançava todo torto, o que parecia estranho. Não sabiam que cravava pregos em suas botas , como penitência. Foi esta vocação para aproximar as pessoas que lhe valeu a fama de casamenteiro. A lenda, diante de tantos pedidos atendidos através dos tempos, encarregou-se do resto. O povo de Amarante destacou-se na defesa da Ponte durante a invasão napoleônica, revelando a índole indomável de sua gente, corroborando a fama que têm os portugueses de serem ferozes defensores de sua terra. Não nos esqueçamos que as fronteiras portuguesas são praticamente as mesmas desde a Idade Média, sendo uma das mais permanentes da Europa.

Um dado interessante é que São Gonçalo não é um Santo canonizado pela Igreja, mas um Beato. O que demonstra que a devoção popular ultrapassa barreiras e que as graças concedidas alimentam a chama da Fé. Para o povo, e principalmente para as mulheres que acreditam que lhes arrumou maridos, é um Santo e pronto. É o que interessa. Como acontece com o nosso “Padinho Cícero”, objeto da devoção intensa do nosso povo do Nordeste, cultuado como se Santo fosse, até mais, pois a maioria dos Santos não têm entre os brasileiros daquela região o número de devotos que o Padre Cícero Romão tem.

Fomos e voltamos de trem para Amarante. Na volta, conhecemos um Senhor aposentado da companhia de trens que viaja, com ar solene e metido num bom terno, de um lado para outro, pousando cada dia numa estação diferente, simplesmente para matar o tempo. Deu-me pena de sua solidão. E agradeci a Deus a família que tenho.

17 de junho

Guimarães

Fomo a Guimarães de elétrico, partindo da Estação São Bento. O interior desta estação tem as paredes cobertas de mosaicos de azulejos evocativos de fatos históricos ( lembro-me nitidamente de um que se referia à Conquista de Ceuta pelo Infante D.Henrique). São de uma técnica e beleza impressionantes, de autoria do desenhista Jorge Colaço, e produzidas em 1903.

Guimarães foi a última cidade que visitamos . Interessante que tendo chegado praticamente ao “fim” da viagem, voltamos ao “princípio” , posto que é considerada a “Cidade Bêrço” de Portugal. Se fossemos seguir a linha histórica deveria ter sido a primeira a ser visitada.

Foi de Guimarães que D.Aphonso Henriques , após a famosa vitória contra os mouros na batalha de Ourique , auto- proclamou-se, em 1139 , Rei de Portugal.

A motivação da visita a Guimarães foi sem dúvida o famoso Paço dos Duques de Bragança. Recuperado em 1930, dado o seu estado de abandono, dá uma impressão bem realista de como ali se vivia. A grande sala, com seu imenso teto seguro por dezenas de vigas de madeira colocadas de tal forma que sustentam o seu imenso peso é algo que nunca vi de parecido; o trabalho de projeção e de construção deixam as pessoas no mínimo boquiabertas pelo conhecimento, arte e capacidade que traduzem. Além de sua beleza estonteante. Vendo aquilo entendi porque mesmo os mais hábeis engenheiros contemporâneos não foram capazes de fabricar uma caravela que realmente navegasse, como se verificou nas Comemorações do Descobrimento. Cheguei a vê-la de perto. Era a réplica perfeita, não há dúvida. Mas não funcionava. Imputam o fato de ter sido adicionado um motor que a fazia adernar. Não sei. O que sei é que se imaginou que viesse, ao sopro dos ventos , até o Rio. Não andou cem metros...No Norte do Brasil, os carpinteiros locais também fazem barcos bem grandes que os engenheiros não conseguem fabricar. Segundo um desses carpinteiros, no depoimento que vi na TV, ele são cheios de pequenas curvas para que possam se ajustar bem ao balanço do mar...

Não é novo obras antigas terem usado técnicas que desconhecemos , mesmo as mais simples; perderam-se no tempo, superadas por outras mais alicerçadas numa tecnologia mais avançada. Sempre me pergunto: como se fazia gelo antes da geladeira? Como se faziam os sorvetes da época?

Acredito que aquele teto magnífico, suspenso como que por uma mão invisível, tenha algo de parecido - representa um modelo difícil de ser copiado, ainda que tenha sido, posto que se conseguiu reedificá-lo por volta de 1930.

A sala de jantar tem mesa mais longa que vi em minha vida. Calculo que ali podem sentar-se uma sessenta a setenta pessoas. O quarto, com sal cama de casal entalhada em madeira ( pareceu-me o nosso jacarandá ), dá bem uma idéia dos costumes do tempo.

Já o Castelo é bem mais antigo. Vem da época em que Guimarães se chamava Vimaranes, e antecede ao chamado Condado Portucalense. Foi erguido por ordem de D. Mumadona Dias para defende a antiga povoação dos normando que vinham do Norte, subindo os rios, e dos mouros que vinham do sul. Pouco resta dele além de sua estrutura externa. Mas traduz de modo muito claro as antigas construções de defesa das populações medievais de Portugal.

18 de junho

Volta ao Brasil

Vôo tranqüilo durante a noite. Pouso quando o dia estava clareando no Galeão, Rio.

Passados alguns dias comecei a escrever este texto, baseado nas curtas anotações que fiz durante a viagem. Minha principal observação se refere a Portugal, mas creio que se aplique, em diferentes graus, a toda a toda Europa Ocidental: a impressão de que tudo já está feito, que já não há muito campo para os empreendimentos. Claro que isto se refere a certo nível de empreendimentos, como os de engenharia, infra-estrutura e congêneres, porque há muito o que ser conquistado na área do conhecimento, principalmente científico e tecnológico.

Com um pequeno território e pobre do ponto de vista natural, Portugal trafega no circulo vicioso de sua limitação. Cada vez é maior o número de jovens que se voltam para o mundo. Cada vez mais os portugueses almejam serem cidadãos do mundo à busca de novos horizontes. Mas sem deixar de serem portugueses .A grande maioria apóia Mercado Comum, que abriu portas a uma Nação confinada no extremo da Península entre a Espanha e o mar. Novas opções surgem, apesar do lamentável sacrifício de alguns segmentos, como o dos pescadores, por exemplo. Portugal não é uma exceção, o sistema é perverso mesmo em sua caminhada para a globalização. Aliás, vários sinais em relação a isto estão aparecendo. Se assim não fosse o BREXIT não teria ocorrido.

De um ponto de vista mais subjetivo, fui a Portugal talvez à busca de um resgate. Algo consegui. Talvez mais no nível da sensibilidade do que suponha. Está presente em minha consciência esta ânsia de Portugal de Ser, esta ânsia que, movida pela pobreza , e pela geografia, impulsionou a sua alma navegante. Esta ânsia que os portugueses transmitiram aos seus filhos com as índias aqui no Brasil.

Senti – e é apenas isso – que esta ânsia se manifesta na busca de um novo objetivo que até agora não foi encontrado. É que a alma portuguesa, muito maior que o seu território, geme confinada.

Muitos consideram que algumas mazelas do Brasil se devem à colonização portuguesa. Há verdade nisto, sem dúvida, posto que Portugal era , em certo plano, um dos países mais atrasados da Europa e dadas as suas limitações, principalmente populacionais, teve que recorrer a diversas formas perversas de exploração para manter e expandir um território que à época era um dos maiores do mundo. Isto aconteceu quando houve a conquista de toda a América, e portugueses não foram nem melhores nem piores do que os espanhóis e mesmo que os ingleses.

Mas, de outro lado, provou que foi possível criar uma civilização nos trópicos, contrariando as teses que - no interesse do colonialismo – diziam o contrário. A grande civilização tropical e morena que estamos construindo será neta, bisneta, tetraneta – sempre descendente – da miscigenação de portugueses com os índios e negros, carregando no âmbito de sua alma nacional, as características destes aventureiros que se lançaram aos mares desconhecidos para sobreviverem e daqueles com os quais se misturaram.

Fomos nós, os seus descendentes, que desvirginamos Tordesilhas.

Num campo ainda mais profundo, o do símbolo e da afetividade, ninguém, como Fernando Pessoa , traduz , num momento onírico, a ânsia a que me referi, o sentimento profundo do português quando se vê a si mesmo inserido no mundo, na história e na espera do que há por vir:

PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restam-nos hoje, no silêncio hostil,

O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,

Se ainda há vida ainda não é finda.

O frio morto em cinzas a ocultou: A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia — Com que a chama do esforço se remoça,

E outra vez conquistaremos a Distância —

Do mar ou outra, mas que seja nossa!

(A Mensagem – Mar Português, XII)

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 10/08/2016
Código do texto: T5724539
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