Caso do leite em pó.

Confesso que nunca tive grande prazer em beber leite. Pior nos últimos anos. Não me imagino tendo a necessidade de tomar um copo de hormônios e achar isso bom. Hormônios sim, pois, hoje, uma reles vaca não pode ter a sua natureza respeitada, mas, antes, atender às leis do mercado e produzir muito, muito leite. Então, dá-lhes hormônios.

Resolvi comprar um saquinho de leite em pó para ter de segurança em casa. Nunca ninguém sabe – uma receita de pão de queijo, um bolo que não aceita água ou suco...

Ao chegar em casa, lá fui atender às minhas curiosidades – procurar a origem do produto. E logo descobri na embalagem – o laticínio era da cidade gaúcha de Cruz Alta. De imediato me veio à mente e ao coração o doce e eterno filho daquela localidade – Érico Veríssimo.

E comecei a viajar pelo tempo (e pelo vento), relembrar personagens, saborear com respeito e paixão o humanismo ímpar , a sensatez e exuberância de sentimentos e da narrativa do grande autor.

Érico Veríssimo marcou a minha juventude da forma mais positiva, criativa e respeitosa. Aprendi a valorizar profundamente essa literatura com o meu tio Dante, aliás ambos nascidos naquele longínquo 17 de dezembro.

E já na minha adolescência eu decidi – se eu tiver uma filha, vai se chamar Clarissa. Ou Ana Terra. Mas Terra era sobrenome, ficaria meio fora dos conformes. A minha Clarissa não veio, mas sei que ela sempre viveu no meu coração.

E, como numa oração, eu misturo o leite em pó ao café Moka que trago todos os anos da minha São Paulo.

Olho para o leite em pó, penso na Cruz Alta que não conheço. Penso no autor que, um dia, foi professor de uma ex-colega. Quando ela me contou o episódio, senti os meus olhos brilharem por uma vibrante satisfação – conheço uma pessoa que teve contatos intelectuais com um notável humanista.

E, atualmente, buscar referências em pessoas do bem é tão essencial quanto um copo de água num deserto, um bom prato de comida depois de intermináveis horas de trabalho.

Nunca me senti tão envergonhada do meu país, que há, dentro de poucos dias, de aplaudir a vitória da hipocrisia,da traição e da mentira. Quem sabe alguns batedores de panela terão os seus orgasmos débeis e insanos ao acreditar que “agora sim, agora vai.”

E os conchavos vão acontecendo à luz do dia. Não, não. Nada de calada da noite. Abaixo a vergonha! Abaixo o respeito! Vão rir, vão zombar muito da sociedade por fazerem o país chafurdar na imundície da lama que vomitam por todos os buracos do corpo em busca de muito mais dinheiro e poder.

E tem gente que vai gostar, fingir esquecer a história, as conquistas tão arduamente conquistadas.

Vale mais se passar por rico aquele pobretão que acumulou alguns vinténs ao longo de 30, 40 anos de trabalho.

Eles querem apagar a cor vermelha das nossas mentes. Não vão conseguir. Até porque o vermelho – que eles não entendem e nem desejam - é o que se estampa nos nossos rostos, de tanta vergonha . Mas eles não sabem o que é vergonha na cara e nem pedem ajuda aos universitários. Apenas zombam e se locupletam pelo produto do roubo infinito.

E eu vou me apegando silenciosamente ao passado , à cultura, à elegância moral de uns tantos escritores e artistas que me ensinaram a refletir, a não cair nas falácias dos oportunistas, no ódio aos mais simples. Típica psicose social – o momento é nauseante, vou me apegar emocionalmente onde existir segurança emocional. Segurança moral, ética, de evolução, de prestígio ao humano, na coragem de ousar. Mas que não deixa de ser uma forma sutil de resistência.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 13/08/2016
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