Para o próximo dia dos pais.

Pai, para o seu próximo dia – não amanhã, mas num outro momento das nossas existências, quem sabe daqui a alguns séculos, a gente vai ser mais feliz.

Vamos combinar assim, pai: não precisa ter cara sempre fechada para mostrar que é a autoridade da casa. A gente sabe que pai e mãe têm o seu lugar como orientadores, provedores, e sabemos respeitar as hierarquias.

Você pode me ensinar a fazer brigadeiro – nem precisa enrolar. Dá prá comer de colher e a gente pode comer juntos, esfriar um pouco, raspar a panela com colher de pau. A gente pode rir junto das descobertas, das delícias e comentar depois o que fizemos.

Você não vai precisar se preocupar que tudo há de te fazer mal. Não vai não, pai. Na vida também existe o prazer simples, cotidiano, das descobertas e dos sabores. É preciso aprender a tomar a iniciativa do sorriso, do abraço.

E eu vou querer me sentar no seu colo muitas vezes e você vai poder fazer cosquinha no meu papinho... e eu vou morrer de rir. Por favor, não me aperte mais as bochechas e nem diga “você é feia” porque você não imagina o quanto era dolorido o meu choro ao ouvir você dizer isso e sair dando risada.

E quando tiver alguma coisa, mesmo que simples, a me ensinar, ensine e não vá precisar dizer depois que eu só daria vexame, como aquela vez que eu deixei cair um garfo na casa da tia Léia. Lembra?

E eu quero ir ao cinema com você. Não como aquela única vez que fomos e você não me deu uma única palavra, nem antes, nem durante e nem depois de assistirmos o filme.

Ir ao teatro, fazer pipoca – e não quero que seja de microondas. Tem que ser de panela, e você falando “arrebenta pipoca, Maria-sororoca”. Eu também vou rir disso.

Me arruma uma cachorrinho, pai, e a gente sai com ele prá passear.

Fique tranquilo. Isso não vai lhe tirar a autoridade.

Não me faça esconder o pote de pimenta do reino atrás da panela de feijão prá comer escondida de você. Eu acabei aprendendo a mentir por coisas assim.

Não me faça pensar em usar tailleur. Eu quero calça jeans.

Não me peça para cursar Economia ou Administração de empresas porque eu quero ser professora de História e não vou ser a”coitada que vai morrer de fome”.

Nessa vida que ora escrevo, pai, eu fui professora por 30 anos e muito feliz. Sei que contribuí para que muitos fizessem suas escolhas com liberdade e entendimento das coisas do mundo. Tentei passar-lhes o humanismo e o respeito pela vida... e fiquei muito longe de morrer de fome. Sustentei muito bem a minha família.

Fique presente, pai. Nos ouça. Sorria prá nós. Não fale mais que “para mulher não se mostra os dentes”. E quando eu, marotamente, respondi: “mas e se ela for dentista?” você não achou nem um pingo de graça. Eu estava apenas sendo criativa no meio do seu conservadorismo tão atrasado.

Seja presente, pai. Sempre. Não tenha medo. Vamos inventar um bolo e comer juntos, com bastante meleca. Inventar uma história fantástica, criar um clima de suspense e recriar no dia seguinte até arrumarmos uma solução para o enredo. Brinca um pouco de boneca comigo. Ninguém vai duvidar da sua masculinidade. Para se sentir mais seguro, então não deixa ninguém saber. Eu prometo não comentar nada com ninguém.

Vamos ler juntos, comentar os autores, brincar de forca.

Vamos viver, pai. Nada vai lhe fazer mal.

Não deixe mais, com a sua presença, que eu caia na conversa de um mau caráter com apenas 14 anos. Só a sua doçura e companheirismo podem me ensinar, mais cedo, a ser feliz.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 13/08/2016
Reeditado em 14/08/2016
Código do texto: T5727750
Classificação de conteúdo: seguro