VOLTANDO A DRUMMOND EM FRAGMENTOS

1--POEMA “O CASO DO VESTIDO” (livro “ROSA DO POVO”, 1945): intertextualidade? Homem, alucinado por um amor adúltero, pede à própria esposa que interceda junto à amante desdenhosa, abandona a família e, extinta a atração, volta para casa. São150 versos heptassílabos, distribuídos em 75 dísticos. // Teatro puro? Segundo o crítico EMANUEL DE MORAES, 3 movimentos, na clássica divisão aristotélica: a--prólogo, 3 primeiras estrofes com resumo para o desenvolvimento da ação + b--episódio, 56 estrofes seguintes, narração propriamente dita + c--êxodo, 10 estrofes finais, conclusão e arredondamento do ocorrido, ligando os últimos versos aos iniciais. // Poema de feição popular, linha da literatura de cordel ou teatro primitivo medieval em estrutura dramática - temas universais de herói e anti-herói, cavaleiro andante, virgem fiel, esposa impoluta, mulher devassa, marido malvado etc. -- reunião do cotidiano com o sobrenatural, ‘odisseia’ particular de cada homem. Confronto do bem contra o mal, vícios e virtudes, castigos e prêmios, poderes divinos e demoníacos, posterior triunfo da caridade e do amor. // Este poema parece versão estilizada-moderna de “Odisseia”, de Homero, Ulisses voltando para Ítaca. Tema corriqueiro e linguagem coloquial, mostrando os impulsos básicos que regem a vida e marcam o caminho dos homens sobre a terra: amor, paixão, desespero, fidelidade, traição, orgulho, humilhação e resignação. // Prólogo - plano do presente - Mãe conversa com as Filhas, as Tecedoras no original grego que acompanham a mulher que espera - idem acontece com Penélope. Diálogo tipo coral, Mãe no papel do corifeu e filhas são as coreutas, figuras secundárias; pai as abandonou muito pequenas - vêem o vestido pendurado num prego e querem conhecer o segredo: “É o vestido de uma dona que passou” -responde a mãe lacônica e pela insistência faz a narrativa dolorosa. Penélope esperou e sofreu por vinte anos, luta e solidão contra os Pretendentes. “...o vestido nesse prego está morto, sossegado” - no entanto, ele continua cheio de vida e de imagens ocultas, condensa o abandono, o pecado, o posterior perdão e a acolhida final ao traidor. Na penúltima estrofe, a Mãe dá á roupa uma dimensão onírica: “..vestido não há... em nada.” - com isso afirma que, se nada estivesse pendurado ali, é porque nada teria acontecido. // Episódio - plano da memória - Mãe relata a paixão do Pai pela “dona de longe”, depois desprezo dela e ruptura - tal e qual aventuras de Ulisses com Circe e Calipso que em tamanho desvario lhe ofereceu a imortalidade - a feiticeira de Eia o castigara, transformando seus companheiros em porcos, apaixonada pelo inconstante. Pai e Ulisses, essencialmente infiéis... // Êxodo - entrelaçamento de passado e presente - regresso do Pai e à casa e Ulisses chega a Ítaca. Penélope não identifica o marido sob o disfarce de mendigo, Mãe o reconhece imediatamente: Era sempre o mesmo homem (...) e nem parecia mais velho. // Pai fora do maniqueísmo habitual do teatro e da poesia popular, o único personagem que não recebe castigo: a Mãe e a Dona perdem a juventude, a beleza e a alegria de viver. Ele é o que era: comendo meio de lado, fazendo barulho com a comida na boca, egoísta, inconsciente do mal que pode causar, tão ambíguo quanto Ulisses grego, sendo apenas um Ulisses mineiro.

2--ENTREVISTA fragmentada sem o entrevistado:

O senhor se vê como poeta? - “Não me vejo (...) Eu sou eu, estou dentro de mim.” // A posteridade o preocupa? - “Não dou a mínima. (...) Havia um escritor chamado Humberto de Campos que era o máximo - até que morreu. O Brasil inteiro acompanhou sua doença. Todo mundo lia seus livros. Hoje, não há um editor que se lembre de editá-lo.” // Isso pode acontecer com o senhor? - O julgamento contemporâneo é muito falível. (...) Vamos admitir que no momento eu esteja na moda. // Como o senhor consegue se manter atualizado? - “Gosto muito de algumas coisas em TV - os telejornais, naturalmente, porque é uma maneira de se receber as notícias logo. Sou um leitor de jornal voraz. A única vocação que tive foi a de jornalista, e não a realizei plenamente. Não é uma frustração porque, se há uma pessoa que se sente relativamente feliz, sendo uma pessoa cética e até pessimista, sou eu. Levei sempre uma vida de classe média modesta, nunca aspirei a subir a um grau mais elevado, nunca cultivei pessoas poderosas e nunca tive necessidade de pedir emprego. Quer dizer: passei a vida sem maiores dificuldades, também sem maiores glórias.” // O senhor concorda com a crítica? - “De vez em quando ainda aparecem aí uns sujeitos que me metem o pau. Fui atacado até pessoalmente. Poema “Sejamos pornográficos”... O pessoal dizia: “Como é que um chefe de gabinete do ministro da Educação, lidando com normalistas e crianças, um homem que dá conselhos aos brasileiros para serem pornográficos?” Eram burrices, né? A pessoa que publica um livro, compõe uma canção, faz uma escultura ou pinta um quadro, expõe a carne às feras. Aquilo que saiu dele, pertence à comunidade. Se o crítico não compreende, se ele é burro, paciência.” // Como, na sua obra, o humor ajuda a temperar o ceticismo? - “É possível que sim. Em vez de ficar irritado, atirando pedra nas instituições, eu jogo com um pouco de humor.” // A imprensa já o chamou de seco e mal-humorado... - “Eu não abraço, costume muito brasileiro, pancadinha nas costas. Nem sempre isso me ocorre, até por timidez. Eu não sei se a pessoa está disposta a ter aquela exuberância comigo. Então, eu a poupo da reação. Agora, procuro ser polido com todo mundo. E nunca recusei coisas por orgulho.” // Nem prêmios? - “O de Brasília é oficial; não aceitei porque tinha colegas meus presos, jornalistas torturados. Não podia protestar contra isso nem o meu feitio é agressivo. Então, achei que a maneira que eu tinha de manifestar que eu não estava de acordo era não ir lá e não aceitar. Recusei o da ABL para ter mais autoridade para criticá-la. Fica-se preso por gratidão até ao que nos incomoda. Não tenha nada contra, mas a Academia não preenche os fins que devia preencher, restabelecendo a coleção de livros que publicava. No máximo, tem uma revista...” // O senhor ficou muito abalado com a morte de Vinícius? - “Naturalmente senti muito... Apareci numa foto, barba por fazer, mas foi um problema de herpes. Eu invejava teoricamente o conceito que ele teve de vida, independência de espírito, falta de compromisso com as convenções sociais, fazia o que queria, com doçura e capacidade de encantar. // O senhor não tem realmente consciência da dimensão de sua obra? - “Falha que podia ser melhor. Não teve um desenvolvimento assim consciente, lógico. Fui levado pela intuição, instinto, emoções do momento. Sendo homem do meu tempo, exprimi paixões e emoções temporais, e isso naturalmente tocou as pessoas. Ao escrever poesia, procurei resolver meus problemas internos, de ascendência, genéticos, de natureza psicológica, inadaptação ao mundo, como ele existia - minha autoterapia. As modas mudam muito e daí a 5 ou 10 anos terei desaparecido e virão novos poetas novas formas de poesia-critérios-tendências. Num futuro de 50 anos me descobrirão como ‘aquele-da-pedra-no-caminho’... // O ‘anjo torto’ foi ‘gauche’ na vida? - “Fui. Não aderi aos valores da minha época, participei timidamente da renovação literária. Fiquei na minha toca, nada de especial, vida medíocre... Fui um homem qualquer. Mais nada.”

FONTE:

Recorte sem indicação de título - SP, Revista VEJA, 19/11/80 // “O caso do vestido”, análise de Maria Julieta Drummond de Andrade - Rio, jornal O GLOBO, 21/10/82.

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