Carta de um Velho Índio da Cidade

O documento do juiz diz que esta casa é sua. Diz que este terreno com tudo que tem nele é seu. Cada folha de grama, cada agave, cada galho seco, cada tijolo, poeira e rachadura são seus.

Diz que eu tenho um prazo pra eu sair dessa casa, mas eu não vejo uma casa. Eu vejo um lar. Um lar com todas as responsabilidades que um lar traz, de limpar e manter limpo, de consertar, pintar, varrer. É preciso manter a água da piscina limpa, a bomba-sapo funcionando, regar as plantas, reconhecer os pássaros.

Todo esse mato que o senhor acha feio tem nome e tem função. Aquelas trepadeiras são favas e servem de comida pros papagaios e pra nós se assim precisarmos. Aquela moita no meio do gramado é um pé de batata-doce, que foi plantado ali com todo carinho já que a grama não se desenvolvia entre as sombras das árvores. Essas três grandes árvores que o senhor provavelmente vai chamar de pinheiros ou ciprestes na verdade são Abetos. O terceiro Abeto, que também é o menor está assim por que está sendo envenenado com sabão que vaza da caixa de gordura e era isso que eu estava tentado resolver até que o documento do juiz chegou naquela tarde chuvosa e precisamos começar a guardar nossos pertences.

Na frente da casa temos a pitangueira, a aceroleira e a tangerineira, a figueira, dois limoeiros e uma tímida pata-de-vaca. Todas pedem pouco trabalho; apenas um pouco de adubo no início das chuvas e uma poda no final do inverno. A tangerineira pede para cuidar para que as formigas não devorem demais suas folhas nem lagartas que aparecem repentinamente.

Na janela do banheiro o que pode parecer sujeira na verdade é a casa de uma dezena de minúsculas aranhas que vi nascerem. Uma delas já carrega orgulhosa sua bola de ovos de onde nascerão cerca de duzentas pequenas aranhas que se espalharão pelo quintal, se a janela do banheiro estiver aberta. Elas são mosquiteiras e realmente nunca vi nenhum mosquito voar ileso pelo banheiro. São inofensivas e limitam seu espaço de caça à janela do banheiro.

Todas essas plantinhas que o senhor chama de mato ou erva-daninha são remédios, são curativos da terra que foi ferida. A Serralha, o Macaé, o Boldo que cresce com pressa de alimentar os beija-flores, o Quebra-pedra, tão tímido crescendo entre as rachaduras. Na sombra do muro azul, de um azul que não se fabrica mais, os morangos silvestres querem crescer e na borda seca de frente à piscina as hortênsias adormecem durante o inverno. Não as arranque se parecerem feias e mortas; é a renovação da beleza.

Aquelas tomadas no topo dos caibros na frente da casa parecerão inúteis até chegar o Natal. É bom ver o sorriso nos rostos das crianças com luzes que dançam em ritmos cristãos. Não há porque retirá-las.

Há os morcegos e os beija-flores com os quais havia feito um trato de néctar por fotografias, há os bem-te-vis e os quero-queros pedindo água, uma dúzia de sapos de pele grossa e fria nos dias úmidos e os enormes lagartos passeando pelas paredes chapiscadas nos dias de sol.

Quando a Quaresmeira perder algumas folhas ao vento ou florir aprecie com respeito. Nossos filhos felinos estão ali enterrados e isso não irá contaminar a terra nem a água, pois tudo que há agora é nitrogênio, cálcio, potássio, matéria orgânica e mais flores na quaresma como agradecimento.

Há o fungo branco que decompõe os frutos e fezes dos pequenos animais; ele não irá contaminar seus filhos. Ele mostra que o solo é vivo e que a transformação é sempre necessária. E por debaixo das folhas secas nos cantos sombreados há minhocas ávidas por cascas de frutas e legumes; é um gado minúsculo e inofensivo, são escavadoras e guias de raízes e de gotas d’água perdidas.

Fiquei pouco tempo nestas terras, e como um índio que é trocado de reserva, eu li todas as histórias que esta casa me contou. Cheguei com o respeito que se chega a um local sagrado, onde Sílfides fazem riscos na água da piscina com seus pés e mãos invisíveis. Onde a névoa quer regar a terrar sem ferir. Ali você terá a maravilhosa chance de salvar alguns pequenos insetos pelo simples fato de que a vida deve ser valorizada. Maravilho-me sempre nesta terra onde a chuva fina chove para os lados e para cima e faz danças que somente olhos infravermelhos podem enxergar.

Não vou destruir o formigueiro de formigas vermelhas se elas me mordem somente quando eu destruo a casa delas e na natureza este é o verdadeiro significado de ser bom; lutar para proteger os seus. Não vou espalhar inseticida pelo quintal com medo das abelhas que passam por ali curiosas, perdidas, empenhadas, ou pelo medo das formigas pretas solitárias que ferroam com a força de um lanceiro. Não vou me assustar com os voos das mamangavas polinizando o maracujazeiro no muro alto.

Não se espante com um grande pássaro preto te observando sobre o muro. Não é um urubu; é um Jacu que mora nos fundos com a família e que reclama que os gambás estão cada vez mais perto e ousados. Ouça seu voo. Ainda vivemos num bairro silencioso o suficiente pra ouvirmos o planar das aves. Não reclame se o sinal de celular for fraco ou se a internet for lenta, ou se o sinal do satélite se perder na névoa espessa. O futuro é um lugar calmo onde os celulares incomodarão apenas seus donos.

Há um prazo para sairmos destas terras e assim o faremos. Estamos sendo empurrados para outras terras e de lá faremos nosso lar e lá entraremos respeitosamente e ouviremos os pedidos das árvores, e adotaremos outros beija-flores, e identificaremos cada remédio que nascer pelo gramado, e ouviremos todas as histórias que o vento vier nos contar. E dentro da nova casa entenderemos que cada prego, parafuso ou gancho é uma saudade de uma pintura, de um enfeite ou de uma planta. Plantaremos temperos e ervas medicinais. Respeitaremos cada toca e cada ninho e contemplaremos com serenidade os tapetes de flores de cada estação. Levaremos mudas do Ipê, do Jacarandá e um pouco da terra que as minhocas engordaram. Levaremos lembranças, vídeos e fotografias. Vídeos da névoa que adora galopar nestes morros, fotos de uma tarde amarela de um amarelo que racionalmente não estaria lá. Lembranças de uma enorme estrela cadente e dos vaga-lumes que se espalham vindo das florestas quando ocorrem os apagões nos finais de tarde. Lembranças dos gaviões-penacho e das maritacas sempre apressadas.

O fungo vermelho nas cascas das árvores me diz que posso respirar fundo aqui e essa água de poço que você chama de contaminada não escurece nem derrete as folhas como as que caem na água clorada da piscina. Troco sem pestanejar esse cloro cancerígeno e esfoliante por alguns vermes intestinais, se é que eles estão realmente ali na água ferruginosa desse poço.

Nunca me senti dono desta casa nem nunca o quis ser. Sentia-me tutor da natureza que a habita e rodeia, e com a tranquilidade das madrugadas daqui eu entregaria este meu posto a quem assim pensasse. E que enxergasse muito além do que os juízes e advogados vêem; um espólio, um bem a ser herdado, partilhado, avaliado, vendido, negociado, adjudicado.

Que numa noite os celulares parem de funcionar e quando a luz faltar, e o silêncio se fizer respeitar, que nesta noite os vaga-lumes e as estrelas cadentes acendam essa chama que toda criança tem e que vai se apagando com as decepções e burocracias da vida e que você passe de mero dono a apreciador deste lugar maravilhoso que o honorável juiz diz que agora é seu, mas que eu digo que é seu para ser cuidado, contemplado, amado, entendido e respeitado.

Dark n Blue
Enviado por Dark n Blue em 16/08/2016
Reeditado em 21/06/2023
Código do texto: T5730574
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