O susto e outras falas

Uma das falas mais inquietantes ouvi na minha meninice. Eu deveria ter uns 10, 11 anos de idade. Estávamos visitando os parentes no sul de Minas e uma irmã do meu tio havia se declarado grávida. O meu tio estava desolado, cabisbaixo, mal se mexia na cadeira, de olhar triste e distante. A sua irmã era solteira e a vergonha havia caído sobre a família como o impacto arrasador de uma bomba atômica.

Na ocasião eu não entendia nada do que estavam falando. Só me lembro de ver algumas mulheres colocando vagarosamente a mão sobre a bochecha direita, com olhos arregalados e secos, fazendo um leve movimento negativo com suas cabeças.

Depois da janta, me lembro do meu tio confidenciando ao meu pai – “uuuh, rapaz, ainda bem que papai já morreu”.

Para mim isso foi o terror. Como “ainda bem que o papai já morreu?” Isso seria uma afronta, um absurdo sem par, uma aberração. Mas eu ouvi isso mesmo. Tenho certeza dada a dimensão do susto.

Com o tempo a gente vai amadurecendo e passa a aprender que o não julgamento é algo que deve ser praticado cotidianamente, pois não podemos ter a pretensão de ser a palmatória do mundo.

E, hoje, sou eu quem digo: “ainda bem que a minha avó morreu”.

A minha avó sempre foi uma mulher sábia. Filha de imigrantes italianos, soube na carne o que era pobreza e o quanto os pobres precisavam de respeito. Muito trabalhadora, não sabia o que era preguiça e nem se lastimava da situação. Mesmo quando foi, próximo aos 70 anos, perdendo a capacidade visual, não lamentava. Vivia apenas.

Ela, meu avô e filhos saíram do interiorzinho de Minas no final da guerra. Queriam que os filhos estudassem, então se mudaram para São Paulo. Lá foi a minha mãe estudar no tradicional Colégio Caetano de Campos e o meu tio foi ser o primeiro colocado no vestibular de Farmácia da USP. Bom, né?

A minha saudosa dona Noêmia lia muito e compreendia muito bem o valor da leitura. Amava o conhecimento e não tinha vergonha em perguntar. Lia os Iluministas, lia o que havia de melhor da literatura que chegava à nossa casa, no nosso sobradinho humilde de dois dormitórios de um bairro operário de São Paulo. Lia jornais e nunca se deixou levar pelas mentiras das classes políticas.

Quando começou a perder a visão, meu irmão e eu contávamos para ela o que esta acontecendo no país. Pausadamente para que ela pudesse compreender bem. Detestava os tempos da ditadura e fazia, vez ou outra, os seus comentários precisos.

Mas, se fosse hoje, o que eu diria para ela? Diria que uma corja desavergonhada estaria tirando o poder das mãos de uma presidente democraticamente eleita e que a mesma não havia roubado absolutamente nada. Como eu haveria de lhe explicar isso?

Como eu haveria de dizer que o partido da presidente – que a minha avó nutria o maior respeito, diga-se de passagem – fora o único que soube promover inclusão, que milhares de miseráveis deixaram de sê-lo e que milhões puderam aprender a ler e com possibilidades de chegar às universidades? Seria duro demais contar para a dona Noêmia que, pela primeira vez na história, era possível pobre ter casa, luz no meio da escuridão, água no nordeste antes tão árido.

Mas que a macacada sorrateira empoleirada no confortável camarote do poder queria mesmo era acabar com essa conversa de inclusão, de pobre conseguir viajar de avião, de preto poder até virar doutor. Onde já se viu? Esse assunto de pobre não interessa, dá comichão.

E que o empresariado até teve o desplante de inventar um pato imenso e colocar na Paulista, para convencer a população que a mesma iria pagar o pato pela crise política. E teve gente que acreditou! E mais – eu teria que explicar que a grande imprensa estava todos os dias, aliás, todos os segundos, fazendo oposição ao governo, pois um dos motivos era o corte de verbas em publicidade.

“ A revista Veja, vó, lembra que a gente lia quando a revista era decente? Então, ela perdeu quase 80% dos recursos de propaganda do governo federal e não sabe mais o que fazer para derrubar a presidente Dilma. Quando a Câmara votou, em maio, pelo afastamento, a Veja teve a petulância de colocar na capa uma menininha de 13 anos, com o rostinho pintado de verde e amarelo, com a boquinha aberta, falando “eeeeeeeee!” Tadinha, vó, o nenezinho nem sabia que estava sendo usada... e de graça. O papi e a mami devem ter achado tão lindinho ”.

Seria muito trabalhoso explicar tudo isso e muito mais. Explicar que a presidente abriu espaços para que corruptos fossem para cadeia – e corruptos ricos, que jamais pensariam em conhecer o xilindró. Isso foi uma aberração, vó. Nunca se vira, até então, um consumo tão exagerado de papel higiênico entre os engravatados que sempre arrotaram poder.

A vó ouviria com ar sério, a testa levemente enrugada. Colocaria o segundo dedo sobre o dente canino direito, ficaria pensando um pouco para, em seguida afirmar:

- “O povo não vale nada. O povo é muito ordinário. É o povo que vota nessa cambada de deputados e senadores que traem desse jeito...”

Mas a minha avó também sabia, com muita propriedade, que era parte do povo e jamais a totalidade que não valia nada e que era muito ordinária.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 30/08/2016
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