PIRAÇÃO

Outro dia, numa conversa em que mostrava uma situação imaginária o interlocutor falou: “você pirou de vez!”.

Parei, pensei e ri. Ri muito!

Realmente o que expunha era mesmo piração. Situação muito louca, que qualquer pessoa com um mínimo de tino nem ousaria pensar.

Mas ri, não da loucura que pensara, mas da constatação de que havia pirado.

Há muito procuro um momento de desvario total. Chutar o balde, viajar na maionese. Sair livre, leve e solto, como já se disse.

Sempre fui muito racional e isso me reprime. Reflito demais, poucas vezes sou impulsivo e se não aproveitar o impulso de imediato, ele perde drasticamente a sua força, pois logo, logo, já estarei refletindo sobre as consequências que poderão advir, quais as opções, possibilidades de dar certo ou errado, custo-benefício etc...

Não! Por favor, não pensem que sou indeciso, inseguro, medroso. Não o sou! Mas tenho essa característica que privilegia a razão.

Fiquei tão feliz com o “você pirou de vez”, que cheguei a me sentir inebriado por pensamentos cada vez mais loucos.

Disse de mim para mim: "vou me despir dos preconceitos, tirar as roupas que envolvem o corpo e a alma, abandonar a consciência e deixar me levar pelo instinto".

Estava, então, no trabalho e, imediatamente tirei a gravata e os sapatos, justo no momento em que a secretária entrou na minha sala.

Ela olhou para mim e disse: "o senhor está diferente, parece estar longe daqui, feliz..., com uma aura boa".

Quase lhe respondi: "É que eu pirei". Mas ela prosseguiu, sem me dar chance: "os clientes chegaram e todos já estão na sala de reuniões.".

Levantei-me e saí. Ela alertou: "a gravata, não esqueça a gravata". Depois observou: "o Sr. está descalço, ponha os sapatos.". Dei os ombros e segui, mas ainda a ouvi exclamar: "ih ... pirou!".

Não resisti e soltei sonora gargalhada. Fora Confirmada minha piração.

Entrei na sala de reuniões e ninguém notou como eu estava e me sentia (pelo menos não manifestaram qualquer reação).

Pra decepção minha, após a reunião, constatei pelos comentários dos partícipes, que me havia portado exatamente como todos que lá estavam e que fizera intervenções pertinentes, sem me deixar levar pelo ímpeto dos mais jovens, com ponderações que foram por todos consideradas.

Nenhuma mudança no meu comportamento usual.

Lembrei-me de outra observação que certa feita me fizeram, qualificando-me ideologicamente de "de direita" e "conservador".

Sem sentir, repus a gravata e calcei os sapatos.

Durou pouco o desatino!

Alienei-me da alienação na mesma velocidade em que a impetuosidade em mim se esvai.

Mas apesar da volta à razão, ainda sinto o desejo de viver aquela situação desvairada que imaginei.

Dá próxima vez cancelarei qualquer reunião.

Hegler Horta
Enviado por Hegler Horta em 03/09/2016
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