A sorte das flores

O chão forrado de flores brancas. E a mulher de meia idade, abaixando e levantando, como se fizesse uma ginástica programada, recolhia-as com a mão esquerda e colocava-as na cesta improvisada feita com um pedaço da blusa puxada para cima com a outra mão. A atenção, delicadeza e cuidado com que as pegava, escolhendo as que estivessem inteirinhas despertou meu interesse em observar a cena. Fiquei entretida uns bons minutos olhando para aquele quadro vivo.

Quando a “cesta” estava cheia, ela pegou uma última flor, adornou os cabelos e seguiu pela rua, passando ao lado do meu carro. Percebeu que eu a fitava e me ofereceu um largo sorriso, tão branco quanto a cor das flores que carregava. Se eu fosse descrevê-la em uma única palavra diria satisfação.

Fiquei curiosa em saber o que ela faria com aquelas flores. Utilizaria em algum perfume caseiro? Decoraria a casa? Mergulharia numa banheira cheia delas? Faria um tapete ao lado da cama para descansar seus pés ao acordar?

De repente, me veio à lembrança uma cena de infância quando ainda existiam vários jardins nas residências da rua em que e eu morava. Era setembro e eu juntamente com algumas amigas fomos saudar a primavera. Saímos a pedir flores de casa em casa. Cada uma formou um vasto ramalhete, que poderia ser divido em tantos outros, tal era o volume de flores que havíamos conseguido.

Quis então ofertar tão feminino presente às mulheres de minha vida: minha mãe, minha avó e minha nona. Explico: a mãe de minha mãe era chamada de vovó, e a mãe de meu pai, era a nona, apesar das duas terem descendência italiana. Minha avó morava conosco, então seria fácil dar meu presente primaveril. Mas minha nona residia em outro bairro e então contei a meu pai minha intenção. Qual foi a minha surpresa quando ouvi dele: - Acho melhor não dar essas flores a ela!

Eu fiquei confusa com aquela frase. – Mas, por quê? As flores são feias? Eu as achei tão lindas!

- Não, minha filha, elas são realmente maravilhosas, mas ela não vai gostar!

Meu pai percebeu minha decepção e eu notei que ele estava desconfortável em falar sobre o assunto. Mas eu fiquei ali a lhe fitar, como se implorasse por uma explicação. Ele fingiu não perceber e saiu da sala. E eu continuei ali com cara de ponto de interrogação. Pensava, pensava, mas não conseguia imaginar um motivo para ela não gostar daquelas flores. – Elas são tão bonitas, alegres, cheirosas. Ah, não, eu preciso saber! Fui atrás de meu pai.

- Pai, eu queria saber... por que ela não vai gostar de minhas flores?

Então, ele cedeu:

- Não tem a ver com suas flores. Ela gosta de flores. Só não gosta de recebê-las.

- Jura? Como assim?

Eu estava confusa. Achava que todas as mulheres gostavam de receber flores.

- É que certas pessoas têm certos preconceitos...

Ele hesitava em continuar a frase.

E eu ali, parada, olhando seriamente para ele. Finalmente ele soltou o verbo:

- Para ela, somente pessoas que morrem devem recebem flores! Concluiu.

Nossa! Aquilo me fez perder o chão! Agora eu olhava com receio para o buquê que havia feito. Larguei-o no chão. Não, não quero isso! De repente, as flores pareciam murchas, despetaladas, sem vida!

Fiquei tão impressionada com aquilo que nem tive coragem de dar os outros ramalhetes que havia feito. Não lembro o que fiz com as flores. Provavelmente, eu as joguei fora.

Passei muito tempo pensando em como a mesma coisa que pode fazer parte de momentos de felicidade pode estar presente em momentos de dor. Não fiquei traumatizada. Continuei a gostar de dar e receber flores. Mas tudo aquilo me fez questionar os significados que atribuímos aos objetos e acontecimentos. Como para alguns certos rituais são considerados de alegria e para outros representam pesar, tristeza. Passei a ficar mais cuidadosa e respeitar as diferenças de valores. Foi uma lição cultural. Naquele dia eu amadureci um pouco mais.

Depois de alguns anos conheci o ditado: “as flores também têm sua sorte. Umas enfeitam a vida, outras enfeitam a morte”.

Ijaciara Cannataro