Desempoeirando

Era um final de semana muito incomum. Despertei à melodia sofrida e fluida do sabiá, que diariamente vinha se refrescar na minha fonte de estilo romano, cercada de mini bambus que harmonizavam um jardim repleto de damas floridas. O sol estava mais amarelo, o céu mais azul, a brisa mais perfumada...

Algo em mim me dizia que aquele seria Meu final de semana. Contagiado por tanta quietude e equilíbrio, resolvi ajeitar um armário mais parecido com uma cristaleira que eu tinha comprado havia pouco tempo num antiquário, onde o senhor, muito simpático, que lia incansavelmente um livro de poesias polonesas, me datou-a da década de vinte, e num ímpeto artístico, restaurei-o, pondo novos puxadores redondos, semelhantes a margaridas, e pintando-o de azul marinho, para contrastar com a parede da sala de estar onde descansava recostado, que era dourada, compartilhando-a com alguns poucos quadros e pratos pintados, comprados em viagens pela Vida. Ele era definitivamente, meu santuário das relembranças e das cicatrizes, de cada pisadura e ruga.

Iniciei pondo alguns bibelôs organizados por tamanho, passando para alguns livros, todos presentes dedicados, que ficavam perdidos pelas prateleiras, que eram cinco; alguns vasos de porcelana, ganhados da minha antiga vizinha, uma amável avó adotada, e por fim, algumas caixas de madeira, encapadas com tecidos coloridos.

Abri uma por uma. E nelas encontrei minha história. O mapa de cada passo. Cada fragmento, em cada detalhe, em cada desordem. Eu estava bem guardado. Até demais. Encontrei cartas, poemas imaturos, cartões me felicitando a vida, fotos... muitas fotos. Deparei-me com sorrisos, lágrimas, abraços, frustrações, fracassos... E fui resignificando, à medida que classificava as vivências, e combinava sensações, e limpava sentimentos. Tudo estava em perfeita afinidade. Fui bem amado.

Até que encontrei, lá no fundo, um último baú, não muito grande, vestido de um tecido vermelho queimado, com um laço – muito bonito! – adornando a sua tampa. Antes de destampar, passei um pano seco, pois estava empoeirado, tanto que me assustei, pois era o único assim. Abri. Nele, os sorrisos mais lindos, as lágrimas mais sinceras, mais puras, os abraços mais apertados, as frustrações e fracassos mais amparados, tudo de mais deslumbrante estava guardado nele, entre poeira e purpurina, entre sombra e luz. Nele habitava aquilo de mais extraordinário e encantador. A minha melhor parte estava escondida no fundo do guardador de vida, fadada ao esquecimento e à indiferença. A presença mais ausente, a distração mais atenta da minha estrada: Você!

Tirei-o do armário. E escondi-o em mim, meu maior tesouro!

Tiago Gonçalves SET/2016