FOCO ERRADO

Muito viajei por este mundão esférico, mas hoje aquietei meus passos, delegando aos sentidos a busca de horizontes atraentes e compensadores, através das fronteiras eletrônicas, que a cibernética proporciona. E na internet há um vasto mundo a explorar.

Por conta da conexão (eletrônica e mental), mantenho-me informado, relaciono-me com pessoas e empresas, exponho meus trabalhos, pesquiso e acompanho os acontecimentos. Foi assim que travei contato mais íntimo (até onde foi possível) com os jogos paraolímpicos (peço que me perdoem, mas prefiro usar a letra “o” no meio). Embora já tivesse assistido, em outras ocasiões, esses jogos, nunca prestara tanta atenção, nem soubera detalhes sobre atletas ou competições específicas. Emocionante e espetacular são palavras que traduzem bem o que senti, ao penetrar o universo daquelas pessoas, empenhadas em dar o melhor de si.

Podem me dizer que todo atleta faz isso, todavia, para a pessoa que tem corpo padrão, saúde perfeita e condições plenas, a disputa tem um perfil muito diferente. Para tal competidor, existe amplo patrocínio (dependendo do país, é claro), legiões de admiradores, público enorme e fiel, portas abertas de todo lado. Já para aqueles que portam alguma deficiência, o simples ato de subsistir, cotidianamente, já é, geralmente, uma batalha.

A sociedade, por mais que se adapte, para inserir os deficientes na vida social, em plena igualdade com os demais, apresenta ainda muitos obstáculos quase intransponíveis. Em certos países (ou algumas regiões deles) há maiores cuidados e providências (ainda insuficientes), mas são uma minoria bem minoritária. A realidade, na maior parte das nações, é caótica, feia, de desprezo ou indiferença, apesar da verborragia oficial mostrar o oposto.

Quando pessoas com deficiências, apesar disso, ainda se lançam numa jornada atlética, competitiva, as superações têm de ser muito maiores, pois os obstáculos se multiplicam. São verbas que não chegam, pessoas que não acreditam, regras impeditivas, falta de apoio, falta de condições para tudo, falta de transporte. Em muitos casos, falta de dinheiro para sobreviver.

Contudo, a cada novo evento, vemos crescer o número de atletas, os recordes, os tipos de jogos incluídos, e uma parcela, também crescente, do povo, participando mais ativamente do cenário esportivo. E os que antes eram chamados de inválidos ou aberrações, hoje postam de heróis, fazendo coisas que a maioria dos chamados “perfeitos” não conseguiria fazer.

Vi tudo que pude da olimpíada, e depois acompanhei a paraolimpíada. Ao contrário do que supunha, inicialmente, emocionei-me muito mais com a segunda. Achei-a, infinitamente, mais interessante que a primeira, pelas histórias, pelas façanhas, pela alegria esfuziante, onde muitos imaginam existir padecimento. Vi modalidades que considerava impraticáveis, torneios em que pés e bocas substituíam braços e mãos. Senti-me defeituoso, perante aqueles heróis.

Desde o começo sempre considerei absurda a ideia de fazer a olimpíada e a copa do mundo no Brasil, porque o dinheiro gasto em ambos os eventos, deveria ser direcionado a tudo que faz falta no país. E falta tudo por aqui. Mesmo continuando a considerar um enorme erro ter trazido essas festas para cá, devo admitir que a organização foi melhor que o esperado. Porém, em se tratando das olimpíadas, fica muito claro perceber a diferença marcante entre a ênfase enorme dada à primeira, e atenção apenas “obrigatória” em atender à segunda.

Tudo isso se resume a um único problema: foco errado.

Assim como o governo foca no que considera estratégico para ele, em termos eleitorais, esquecendo-se do que, realmente, conta, ou seja, a necessidade do povo, também nós, o povo desassistido, focamos em promessas vãs, ideologias partidaristas desnecessárias, nomes famosos, artistas, movimentos sindicais, sociais, agremiações, achando que podem nos representar, que vão batalhar pelas coisas certas, quando, na realidade, só visam poder, fama, faturamento, reeleição futura e vida fácil. Após as eleições, os conchavos de sempre.

Da mesma forma, em nossa lida diária, focamos nossos sentidos nos objetivos errados.

Comemos errado, fugimos de exercícios, desrespeitamos regras e leis, com jeitinhos e só “um minutinho”, somos intolerantes com quem nos solicita e bajuladores ou submissos com os que nos solicitam ou estão “por cima”. Louvamos a beleza física, a disputa por emprego ou escolas, mas não damos a mínima para a solidariedade ou compartilhamento. Status é tudo!

Em meio a esse caos perceptível, relacionamo-nos com cidadãos deficientes, vendo-os como coitadinhos, quando a maior e mais grave deficiência reside nesse modo de enxergá-los. Nós, os verdadeiros e únicos defeituosos, nunca conseguimos agir e pensar corretamente.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 20/09/2016
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