O Alienista Alienado

Machado era mesmo um erudito verborrágico. Incapaz de se fazer entender. E antes que alguém aponte uma suposta redundância, explico que o conteúdo está na erudição e a lorota na verborragia, portanto, um sabichão de exuberante eloquência.

Penso que se pudéssemos perguntar a opinião de Joaquim Nabuco, o amigo do erudito certamente nos diria que ler as cartas enviadas a ele por Machado durante décadas de correspondência, era mesmo um exercício de clarividência interpretativa.

Pergunto-me então como seus textos eram recebidos, e entendidos, pelos leitores dos jornais e revistas que o mantinham como colaborador. Mas ainda que sua literatura destine-se a um seleto grupo de cabeças pensantes, Machado aventurou-se por gêneros diversos, com maestria e pouca modéstia, e há sempre um ou outro professor de invejada ingenuidade e paixonite aguda, que faz de seus textos ininteligíveis, instrumentos de estudo durante as aulas de literatura das escolas atuais.

Mas deixando de lado a ironia (ou você achou que falei sério até agora?), vamos ao que realmente nos interessa. Há alguns meses, recebemos a notícia de que a escritora brasileira Patrícia Engel Secco obteve apoio da lei de incentivos fiscais para elaborar uma versão simplificada (leia-se empobrecida) de O Alienista, de Machado de Assis, sob a ingênua alegação (não consigo evitar a ironia) de que a obra, se simplificada, atrairá novos leitores.

A meu ver, a ideia é no mínimo estapafúrdia, e demonstra conivência com a inequívoca deficiência do nosso sistema educacional. Ora, se não conseguimos ler Machado de Assis, vamos então simplifica-lo! Trocar alguns termos difíceis, mudar um pouco o sentido das coisas não vai fazer mal algum. Quanto ao projeto gráfico, não há problema em aumentar o tamanho da fonte e a distância entre os parágrafos, mas não venha me dizer que Machado está tão distante de nós a ponto de ser necessário reescrevê-lo.

A literatura exige maturidade em qualquer fase. Um bom leitor é como uma semente que deve ser cultivada aos poucos, com zelo e respeito pelo seu tempo de maturação. Incentivar uma criança a ler Machado por meio de adaptações que utilizem mecanismos lúdicos é totalmente válido.

O cinema e o teatro também são alternativas louváveis, e indispensáveis, que nos aproximavam de histórias muitas vezes contadas em calhamaços cuja lombada pode mesmo assustar.

Contudo, um leitor em potencial deve almejar o mundo literário com sua alma e coração, evoluindo em sua leitura e preferências, enriquecendo seu vocabulário para somente então, como uma espécie de seleção natural, buscar por conta própria aquilo que mais lhe interessar. Pode ser que esse mesmo leitor nunca se interesse pelas proezas literárias machadianas, mas caso o faça, será com gosto e coragem, sem subterfúgios ou facilidades.

O maior escritor brasileiro está sendo grosseiramente “reescrito” com o aval do Poder Público, e por meio do uso de dinheiro público. Somos coniventes então, já que nossos impostos estão financiando o empobrecimento intelectual da população. Se um jovem não se interessa por um clássico da literatura por conta de algumas palavras que o mesmo não conhece, reescreva! Encontre um sinônimo que corresponda à sua limitação.

O Alienista foi alienado. Maculado. Perturbado em seu ofício. Desrespeitado. E quantos aos outros, sairão ilesos? Bentinho está quietinho no seu canto, torcendo para que não lhe arranquem o dom da narrativa. Afinal, o que seria dele se não fosse sua lábia ardilosa que teima em convencer a maioria de que a cigana dissimulada cometeu adultério?!

Não se preocupe Bentinho, Dom Casmurro é extenso demais e certamente daria muito trabalho. Não vale a pena o esforço em recorrer ao “pai dos burros” para buscar sinônimos mais acessíveis.