CAMINHOS DA CHUVA

Tem chuva cheia, tem chuvisco, tem poça pequena e grande, tem lagoa transbordando, enchente e morte, tem peixe vivo, fartura, embarcação e plantas saciadas.

Tem procissão e reza forte, pedindo a chuva que não vem, sol escaldante queimando as plantações.

Tem temporal, aguaceiro, pés no lodo, barco dançando no temporal.

Dançando na chuva ,velhos tempos da Broadway, Fred Astaire... e o vento levou...( leva ainda, nosso suor e sangue...)

Tem sapo fazendo festa nos brejos, menino rolando na lama, e a chuva apagou a fogueira da Festa de São João, e foi? Fogo não gosta de chuva, que ela é fria e muito enxerida, vem logo molhando e molhando e apagando as chamas ondulantes, tem hora pra chuva, viste?

E foi há tanto tempo... foram-se as fogueiras...

Tem soldado morto no campo de batalha, chuva escorrendo sangue recém brotado, tem choro convulso

na enxurrada, tem mãos na cabeça, espelhos borrados, vida negada...

Naquele dia por que ele saiu tão cedo e atravessou pela enchente pra morrer? Chovia tanto quando não vei mais, nunca mais...a sombrinha clara tremia entre as mãos dela,m como fugir dessa tempestade sufocando a alma?

Mas não há mal que sempre dure ... O coração compungido é o mesmo que amanhã acordará mais leve, que tudo o tempo cura.

De joelhos na calçada, o menino pousou o barquinho de papel na correnteza e a brisa leve agora secando as folhas arrepiadas fez ele

deslizar e rodopiar bonito ( foi há tanto tempo...) Depois o menino

cresceu e um dia partiu em seu grande navio verde-amarelo.

E assim o menino foi aprender de chuvas nunca imaginadas. Aprendeu de corpo enregelado e acolhidas calorosas.

Aprendeu de rezas na hora de perigo que nessas horas ansiosamente clamamos por um guarda-chuva de esperança e socorro. Aprendeu de

gentes e festas , de amorosas acolhidas nos portos de tantas

terras distantes, viu a dor , a alegria, a barba cresceu no rosto um dia tenro . Meninos crescem ainda que as mães não queriam, e o

bebezinho vira homem , e cai no mundo.

Tem chuva de voltar, quando a gente já nem queria mais ir em frente. Aquela que nos fornece o álibi para um momento de capitulação.

Momento de alívio , alegria e a busca do aconchego em cama quente.

Tem passarinho encolhido sob as folhagens, olhos inquietos, pingos trêmulos nas plumagens, na ponta do bico. Depois , tempo estiado, sacode as asas , se arrepia , estremece e pega a voar lonjurs de passarinhar novidades.

Ouvem-se alguns tons mais agudos quando a chuva pinga fininha sobre as poças transbordantes (choverão agora as memas chuvas de outros

tempos?). E ao fundo o chiado tristonho e calmo é como um mantra.

É chuva de se enrolar no cobertor da saudade...

Onde a chuva caiu, lagoa nasceu, a seca se foi e o milharal floresceu, espantando a fome. Onde houvera tristeza e barriga vazia, agora o

feijão brotou para encher as panelas.

O temporal sacode a mangueira e as frutas tombam.. tum tum tum...

O coração do menino agora homem se emociona ouvindo este som familiar. Esta noite dormirá com nove anos, sonhará com seu barquinho e com rostos de meninos felizes de barriga cheia.

Nota:

Texto publicado em 2009

revisto e reformulado

.

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 04/10/2016
Reeditado em 04/10/2016
Código do texto: T5781476
Classificação de conteúdo: seguro