Histórias do avião da morte.

O homem vestia um terno sem sofisticação. O calor do ambiente, combinado com o seu ímpeto, ensopava-lhe as costas de suor. O púlpito revestido por uma toalha de pano com guarnição de renda, mostrava na frente o numeral vinte e cinco. O número fazia alusão ao vigésimo quinto Congresso dos "Gideões Missionários da Última Hora". Carecia um toque de sutileza a decoração daquela tribuna para compor-se apreciável. Mas a aparência, percebia-se totalmente prescindível àquela sufocante multidão que lotava o lugar em Camboriú-SC, no último abril, onde o homem negro fascinava o grande público presente, levando-os a exagerar em emoção. E nem sabiam que o pregador estava para breve morrer. Ele pronunciava em voz embargada que tivera uma visão dada pelos céus a lhe mostrar duas situações distintas. Eu vi – dizia ele – dezenas e centenas de pessoas mortas enroladas em alguma coisa que eu não consegui discernir serem levadas para um lugar estranho e escuro. Enquanto eu caminhava lá, sentia-me tão bem! Acordei-me pela madrugada em prantos, não pela tristeza da experiência, mas porque lá onde eu estive estava tão bom, me deu um desespero quando eu voltei. Eu não queria voltar de lá.

Confesso que ver aquele vídeo do religioso Luiz Antonio Rodrigues da Luz, um pastor protestante, no youtube, – não exigiu de mim uma resposta que em outro momento chamaria de sensata – emocionei-me com o homem que morreria acompanhado de mais cento e noventa e oito – igualmente resgatados dos escombros – enrolados em sacos.

Não me aprouve emitir um juízo, dito racional, sobre a visão que o pregador de verdades dele – como aludiria o poeta Fernando Pessoa. Eu não quis, a bem de toda verdade, perder a tolerância na área de pensar e aprender. Bastava-me saber que era um espetáculo da vida, sem exigir demandar muito de faculdades intelectuais.

As aclamações entusiásticas em Camboriú, o frenesi, as palmas e os pulos dados ao êxtase, trazia uma verdade inquestionável: a busca do conforto para a cruel

falibilidade humana.

Emocionado, Luiz Antonio Rodrigues da Luz dizia “Senhor, dá-me por direito a herança que me prometestes. Dá-me por direito o que me pertence, dá-me por direito a promessa que me pertence.” Conclamava aos fiéis a subjugarem o Vale de Refaim com toda a sua crueldade, com toda a sua miséria, com toda sua ilusão e todo o seu orgulho.

Apesar de todo espanto que nos pode levar o saber que uma vitima vaticinara a catástrofe, não me faz olvidar a história de Leila, também viajante do vôo 3054. Nem sei se vai resolver alguma coisa, mas preciso falar de Leila, mulher de nobres aspirações, que em certo ponto me faz sentir medíocre e mesquinho, mas com desejo de regeneração. Não sei tanto de Leila, mas soube de sua força pelo jornal. Foi um tapa na cara.

Ela morava sem sofisticação - numa casa de madeira, alugada, lá longe, em Santa Maria a 301 km de Porto Alegre. Estudava pedagogia, 35 anos, solteira e se tornara voluntária na ONG Aldeias Infantis SOS, que cuida de crianças carentes. Foi nessa ação de desprendimento que Leila, que à época cursava o quarto semestre no Centro Universitário Franciscano, se apaixonou pela menina que cuidava na creche.

Suelen, que havia completado há pouco um ano de idade, tinha sido abandonada pelos pais biológicos.

Era o primeiro vôo de Leila Maria Oliveira dos Santos. Participaria da última audiência do processo de adoção, que a tornaria mãe oficialmente. Uma amorosa maternidade iniciada há cerca de dois anos e meio, quando se conheceram na ONG.

A pequena Suelen ignora a morte da mãe. Por enquanto, acha que mamãe foi viajar e voltará só no domingo.

Dizem que às vezes, Suelen chega a estranhar ter tanta gente triste em casa e todo incomum movimento. Quando alguém começa a chorar, colocam-na para brincar com um gurizinho da vizinhança e fecham a porta do quarto.

Livre de demandas intelectuais que às vezes não servem pra nada e agarrando-me à fé necessária, saberei sempre que Leila subjugara o Vale de Refaim com toda a sua crueldade, com toda a sua miséria, com toda sua ilusão e todo o seu orgulho. Leila era do tipo que deixava vir a si as criancinhas, mesmo morando de aluguel e ganhando setecentos reais por mês.

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Joel Rogerio
Enviado por Joel Rogerio em 25/07/2007
Reeditado em 26/07/2007
Código do texto: T578400