O pé de Manga e o Curupira

Era uma pequena muda de mangueira, de uma variedade que eu nunca tinha visto. Escolhi o melhor lugar do quintal; protegido de qualquer futuro projeto de engenharia, terra boa e água em quantidade. Nunca imaginei ver uma plantinha tão singela se desenvolver tão rápida e frondosamente. Com a adubação certa, um pouco de torta de mamona de vez em quando, nada muito exato ou científico, ela foi crescendo, espalhando sombra, flores que deixavam as abelhas loucas e num desses verões se encheu de frutos. Maravilhosa a imponência e toda aquela independência dos seres humanos para se enfeitar de ninhos, musgos e líquens. E dia após dia aquela criatura, já com quatro vezes a minha altura com todos aqueles pulmões que fazem alimento através da luz me acenava do quintal sempre que o tempo ia mudar. Nosso amor era respeitoso, quase beato. Estar diante dela já bastava como oração. Receber sua sombra era curativo. Ouvir o vento vindo refrescar-se entre suas folhas era música dos anjos. E era naquelas tardes preguiçosas que ela soprava de leve minha improvisada embarcação flutuante por aqueles blues piscina.

Mas o tempo nos tira de um lugar e nos coloca em outro, assim sem avisar, muito menos pedir. Guardei dentro de mim a lembrança de nossa amizade e agradeci em silêncio pelo fato dela já ser totalmente independente de mim ou de qualquer outro. A casa muda de donos e um dos donos vê na árvore alguém grande o suficiente para extravasar suas frustrações e sentir-se poderoso. Vê na árvore alguém que pode ser vitimado sem trazer pra ele consequências legais punitivas. E assim o ser humano vem, por um motivo fútil ou outro transformar beleza em carvão, em madeira, em dinheiro. Mas alguns destes seres destroem o belo pelo lascivo prazer de ter algo belo para destruir. Como um demônio que passa uma gilete no rosto de uma modelo, como uma criatura baixa que chuta um cachorro sem nunca ter coragem para chutar uma criança, quando cão e criança fazem parte de um mesmo universo. Ele decepou minha árvore, cortou-lhe os braços, a cabeleira, os ninhos, os líquens, o vento. Cortou-lhe a altivez. Transformou-a num estilingue gigante e subjugado obrigado a adorar e enfeitar sua maldita casa.

A primeira vez que a vi daquele jeito, senti-me como uma vítima de estupro deve sentir após o crime consumado. Impotente e sujo, buscando saber onde errou. Quis retratar-me em nome da humanidade. Tive medo. Medo de que ao me aproximar estivesse condenando-a de uma vez por todas. Queria ter sido solidário arrancando de mim mesmo, num acesso de loucura um dos braços com um facão. Querendo pedir desculpas sem saber como.

As vezes penso que deveria ter sido eu ali plantado preso ao solo, indefeso, recebendo aquelas facadas de lâmina cega. Talvez num daqueles momentos de maravilhamento eu o houvesse incomodado e por não poder atingir-me diretamente, me atingia agora através da árvore. Por algum tempo, tempo este que não saberia transformar nesse tão triste tempo de relógios, tudo ficou escuro como se minha alma tivesse decidido dar as costas e partir pra longe, pra algum lugar onde não existisse a menor possibilidade daquilo ocorrer, nem ali nem no meio da mais distante e inalcançável floresta. Não ouvi mais nada. Fui levado para uma floresta densa e cheia de vida pelos braços de dois curupiras com seus pés voltados pro passado, mas olhando adiante todo o trabalho de uma vida inteira a plantar, ensinar a plantar e proteger tantas outras cabeleiras, nuvens verdes, copas suspensas por troncos sempre úmidos de orvalho, entrelaçadas por cipós e cantos de pássaros. Unidas por suas raízes, pelo vento e pelas vidas. Seguir suas sementes aladas flutuando e rebrilhando com os feixes de sol varando uma espessa nuvem prenhe de chuva. Pés de plantas alados caminhando por alamedas centenárias. Curei-me de todo ódio naquele paraíso verde da minha mente. Fechei meus olhos humano. Reabri os olhos curupira.