Senzala - Uma Crônica da Cidade

Thales de Athayde

Cerca de sete fios. O Arame farpado indicava o fim da rua. Rua sem nome. Local de casas mal construídas. Mato. Terrenos baldios. Periferia da cidade. Sem água encanada. Rede elétrica no melhor estilo “gato”. Iluminação pública inexistente. Esgoto a céu aberto. Cachorros magros. Deitados. E a andar aqui, ali. Cheirando tudo. E todos. Rabos a abanarem moscas insistentes. Crianças descalças, mal vestidas. Mulher idosa, enferma, olhos sonolentos, na cadeira de rodas, inválida, a gesticular no vazio da tarde. Menina de saia curta, suja, sandálias remendadas com barbantes, a andar depressa para algum lugar sempre. Pipas no ar, e enroscadas, a deteriorar na fiação confusa da rede elétrica improvisada. Menino de bicicleta, a pedalar, sem rumo definido. Vozes de rádios ligado,. anunciando programas musicais, enchendo o ar de propagandas intermináveis. Vento levantando poeira. Papéis velhos espalhados no chão da rua. Garotinho miúdo, mamadeira pendurada entre os dentes, com um resto de leite com chocolate, rosto sujo, nariz escorrendo, sem roupa. Brinquedos velhos, destruídos pelo mau uso e pelo tempo. Cheiro de esgoto no ar, nas casas, em tudo. Mulher brigando com o amante aos berros. Filhos amedrontados acostumados a isso, do lado de fora do barraco. Carro antigo buzinando em frente ao barraco, som alto, pneus e pintura gastos, escapamento solto. Catador de recicláveis a puxar o carrinho lotado de papelões, de objetos plásticos, de objetos metálicos, garrafas plásticas, latas de cerveja e refrigerante vazios. Homem com barba por fazer, fumando sem parar, sem camisa, desempregado, vendo o tempo passar. Árvore antiga frondosa. Mendigo dormindo sob sua copa. Cinzas e carvão no fogão improvisado de tijolos. Restos de comida no marmitex amassado. Saco sujo com roupas velhas. Mulher esquelética com criança raquítica no colo, olhar de piedade humilhação. Ruídos de crianças jogando futebol, bola velha, esgarçada, murcha. Bem-te-vi cantando na árvore. Viatura policial passando por ali vagarosamente. Observando... observando

A senzala da sociedade é impiedosa. Parafraseando Carolina Maria de Jesus, “é o quarto de despejo, depósito de coisas imprestáveis e gente miserável”.

Nem por isso aqueles seres estão fora da sociedade. Para o político, ali existem votos preciosos. Para o pastor evangélico, ali vivem almas a serem convertidas a Jesus. Para a dona de casa que trabalha fora, lá tem mão de obra barata para limpar a casa, passar roupas, cozinhar. Para o construtor, lá existem o servente de pedreiro, o encanador, o pintor. Para a mãe ocupada, a babá do seu filho. Para o professor, a criança a ser alfabetizada. Para o serviço social público, a família carente a ser orientada e ajudada. Para as mansões dos ricos, o jardineiro, o guarda noturno, o serviçal. Para o padre, a família a ser integrada. Para o caçador de talentos, o menino bom de bola. Para os ricos, a oportunidade de fazer doações e suas esmolas na véspera do natal, mostrando pela imprensa que é uma pessoa generosa.

O favelado é uma pessoa necessária. É uma maneira com que as coisas se acomodaram, para que os ricos fossem completados pelos pobres, e estes se sentissem o complemento de um todo.

Uma verdade ninguém haverá de negar: ali vivem pessoas infelizes, revoltadas, humilhadas, desprovidas de bens e até de carinho. Na alta sociedade também existem pessoas com esses mesmos problemas. Porque o ser humano é um ser carente por natureza. Também lá vivem pessoas felizes. Pessoas com sonhos. Gente com esperanças. Jovens talentosos.

A senzala da cidade é o laboratório dos projetos sociais de uma sociedade imperfeita.

E no fim da rua, a cerca de sete fios. Arame farpado. Rua sem nome...

Thales de Athayde
Enviado por Thales de Athayde em 26/07/2007
Código do texto: T580016
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