ENCONTRO CELESTIAL

(Enquanto alguns anjos desciam do paraíso celestial para realizar a Vontade de Deus, Machado de Assis estava, como sempre, escrevendo mais um texto na ala dos escritores cuja qual Jesus havia construído justamente para as almas desses nobres pensadores e pecadores. Ele estava tão absorto em seus pensamentos que mal notou a presença de José Saramago que acabara de sair do purgatório e agora estava destinado a continuar escrevendo naquele ambiente elaborado pelas mãos do todo-poderoso)

_ Não acredito! Eis o homem: Joaquim Maria Machado de Assis, nascido no Morro do Livramento no Estado do Rio de Janeiro em 1839. Você aqui? Você nem imagina o quanto eu adoro os seus textos? Li memórias póstumas de Brás Cubas umas sete vezes. Claro que também adorei Dom Casmurro, O alienista, Esaú e Jacó, sem deixar de mencionar os seus contos e poemas. Amo sua ironia ácida, seu pessimismo filosófico e suas personagens em sua extensa obra. É uma honra estar diante de vossa presença!

(Machado se levanta da cadeira)

_ Por que essas lágrimas, meu amigo Jose de Sousa Saramago, nascido em Portugal em 1922? Não nego: Eu não sou homem que recuse elogios. Amo-os; eles fazem bem à alma e até ao corpo. As melhores digestões da minha vida são as dos jantares em que sou brindado. E você, como estás?

_ Estou bem. Só em conversar com um dos criadores da academia brasileira de letras_ sendo você o primeiro presidente da academia durante dez anos_ e sendo você um mestre universal na arte de escrever que é o nosso grande deleite. Não consigo descrever o júbilo de te conhecer pessoalmente.

_ Olha quem fala. Tu és até hoje o único escritor da língua portuguesa que já ganhou o Nobel de literatura, bem como o prêmio Camões em 1995. Vou confessar: aprecio bastante as suas obras, principalmente os livros Levantando do chão, A jangada de pedra e As intermitências da morte.

_ Falando em morte, o que você acha da eternidade?_ Pergunta Saramago.

_ Nunca me senti tão vivo e feliz depois que morri. Como eu escrevi em Memórias póstumas de Brás Cubas: Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.

(Risos)

_ Diz-me uma coisa Machado: a Capitu traiu ou não ao Bentinho?

_ Saramago, Saramago_disse sorrindo machado ao escritor português_ a questão está aí: não se pode saber todos os fatos que ocorrem na vida das pessoas, principalmente quando elas amam. Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar.

_ É verdade. Nós até podemos ser consideramos gênios literatos, grandes pensadores, mas quando se ama somos como qualquer pessoa do mundo. Agora, mudando de assunto: é verdade que foste poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário?

_Sim. Sempre buscava manter a minha mente e vida ocupadas, pois nasci de uma família pobre e tive, desde criança, sede por conhecimento e por reconhecimento.

_ Sei bem como é. Meus pais eram agricultores e passei por várias dificuldades até mesmo em estudar em melhores escolas por assim dizer; mas acho que é a vontade individual da própria alma que conduz a pessoa de tornar-se o que se é. E nós nos tornamos, com muita luta e coragem, em quem ousamos ser.

_ No momento em que você chegou aqui no paraíso, você alguma vez já olhou para a vida das pessoas lá embaixo?_ indaga Machado de Assis.

_ Acho as pessoas interessantes, intrigantes, mas continuam a ter como mãe a estupidez, e o pai o medo.

_ Sempre filosofando, não é Saramago? Mas se você refletir sobre esse fato, nós também éramos. Ou melhor: ainda somos arrogantes, covardes e cheios de falhas. Penso que a eternidade aqui é uma outra fase de reaprendermos a nos educar, a pensar, a sentir, a ver, a amar, a ser uma pessoa melhor.

_ E Deus, você já chegou a conhecê-lo pessoalmente, Machado?

_ Deus está bem ali Saramago_ afirma Machado apontando para uma coluna de nuvens envolvida por um arco-íris.

_Mas...

_ E Deus está ali também, e lá mais longe, e perto dessa mesa, e sentado naquela cadeira_ Prossegue Machado, sempre direcionando o dedo indicador da mão direita para várias partes.

_ Você está delirando Machado? Não tem ninguém lá_ diz Saramago em um tom sério.

Machado de Assis ri alegremente.

_ Eis o ponto, meu querido amigo Saramago: Não precisamos ver ou ouvir ou tocar em Deus para se acreditar se ele é ou não é, entendeu o que quis te dizer?

Saramago afaga o queixo, em um ar pensativo. Olha profundamente o rosto calmo de Machado, e finalmente diz:

_ Venham enfim as altas alegrias,/As ardentes auroras, as noites calmas, /Venha a paz desejada, as harmonias, /E o resgate do fruto, e a flor das almas.

Machado bruscamente para de escrever, ergue o seu olhar para a face de Saramago, levanta-se da cadeira, encara com olhos cheios de ternura o homem com quem está a dialogar e abraça-o.

_ Sim meu amigo Saramago, venham as harmonias, as alegrias, a flor das almas. _ repete Machado de Assis com lágrimas nos olhos_ E acrescento: Ama de igual amor o maculado e o imaculado;/ Começa e recomeça uma perpétua lida;/E sorrindo obedece ao divino estatuto./Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.

Depois um longo abraço, Machado senta-se em sua cadeira e volta a escrever, enquanto Saramago caminha um pouco naquele recanto, até ver uma mesa e uma cadeira. Na mesa havia alguns livros, cadernos, algumas canetas e uma mensagem pregada na parede a qual assim estava escrita: DESTINADA A JOSÈ DE SOUSA SARAMAGO. Ele sorri, mexe (ainda de pé) nas canetas e nos livros, olha para cima, contempla ao longe o seu amigo que está concentrado em seus textos, até que enfim Saramago se senta na cadeira, pega uma caneta e um caderno e começa a escrever alguns sonetos sobre o paraíso, rindo baixinho de si mesmo.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 23/10/2016
Reeditado em 23/10/2016
Código do texto: T5800548
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