Vôos da Memória

Todos os dias abro minha janela e contemplo o mesmo horizonte. Difícil dizer porque um dia de chuva inspira suaves alegrias, enquanto a luz radiante do sol nascente reflete na alma uma doce melancolia. Dizem que as almas são eternas, tão eternas como luz e sombra, calmaria e tempestade, mas elas nada mais são do que o ciclo perfeito de implosão e crescimento.

Existência é transição, não há pousada segura nas estradas no tempo. Tudo flui e a lei do tráfego é o mistério. A melancolia atiça a lembrança. Revisito meus primeiros dias, uma casa, um pai, uma mãe, um avô. Relembro uma casa pequena, cercada por ruas de terra, uma chácara em elevação diante da mesma janela, com uma nascente de água cristalina e animais caminhando a esmo. Na nascente havia barro, matéria-prima para moldar fantasias de crianças risonhas. E quantos sorrisos, quantas fantasias!

Naquele pequeno paraíso infantil, não era difícil observar as borboletas e joaninhas passeando pelas folhagens ou as abelhas sobrevoando as flores de algum jardim. Crianças se encantam com um universo desconhecido, tudo é motivo para mergulhos na imaginação. Ficaram gravadas nas minhas recordações os ninhos de pássaros escondidos no teclado da minha pequena casa e as horas que eu passava observando suas idas e vindas. Eu imaginava o que eles diziam uns para os outros, como combinavam seus vôos conjuntos, como brincavam e brigavam entre si.

Como todas as coisas que se transformam, a janela ainda é a mesma mas com outra moldura, a casa mudou um pouco, mas no horizonte não há mais uma chácara, nem animais, nem argila, agora há prédios e carros barulhentos e hoje é apenas mais um dia melancólico. O tempo não pára, mas ainda sou a menina perdida no jardim dos sonhos. Sou um milagre da natureza e ela é a divindade cristalizada. Sou uma pequena forma que ainda quer aprender a ser deusa, mas vivo um tempo oco. Ele recusa a alguns o mergulhar em si e instiga em outro o deparar-se consigo.

Não conheço o segredo do mecanismo, mas sensibilidade é o todo. Tulipas ou cravos, violetas ou rosas? Ainda quero todas, ainda quero tudo. Em alguns, a essência grita a necessidade do conhecer, em mim ela ainda mantém vivo o anseio por tirar o véu do universo. A menina solitária que caminhava pelas ruas de barro e pó ainda respira nesse mundo de passadas fugazes e sofre da ambição vã de ver com os olhos do absoluto. O sentimento de infinito ainda persiste, mesmo sob a melancólica luz de um dia ensolarado, embalado pelas lembranças dos cenários e dos pequenos amiguinhos que já não existem mais.