O FIM DA POESIA ?

O fim da poesia?

Vinho tinto e boa música de artistas vivos e mortos podem quebrar um galho.

Isso aqui é para todos que me amam, todos que estão curiosos por me conhecer um pouco melhor, todos que gostam de ouvir o que um poeta louco diz. Ou seja, pra bem pouca gente.

Vou te falar. Escrevo poesia. Livros de poesia. E-books, na verdade. E cada poesia que escrevo é um grito desesperado: “venham me conhecer!”; “venham compartilhar a vida comigo!”. Sempre pretendo somar coisas e pessoas. Quero sempre mais gente com quem eu possa falar e a quem eu possa ouvir, aprender e ensinar. Porém, a dura matemática da vida parece ser um empecilho para que isso se dê plenamente.

Minha poesia está no fundo do copo deste vinho tinto barato – não do mais barato, mas um vinho razoável. Minha poesia, acho que não me faz bem: me dá ressaca. Ela faz-me sentir, não raro, um imbecil.

Fui chamado de narcisista outro dia na Internet. E é verdade, sou mesmo. Me acho belo e inteligente. Um conhecido meu, músico e pessoa razoavelmente bem sucedida, diz que eu sou um cara que só sabe reclamar, e ele, que pouco me conhece, está certo também. Narcisista e chorão. Que coisa mais esquisita. Sou belo, mas não o suficiente para que todos achem o mesmo. Sou inteligente, mas não o suficiente para sair da casta de onde nasci. Pertinentes e adequados a mim são os versos “eu sei de quase tudo um pouco, e quase tudo mal”, de uma música dos anos oitenta. Toco violão, mas não bem. Canto razoavelmente, mas a voz é um tanto fraca, instável e um tanto anazalada. Dirijo meu carro, mas me apavora a idéia de dirigir o carro dos outros. Sou ateu, mas não possuo as bases científicas para me justificar. E se eu for por esse caminho aqui eu não termino mais de escrever. Auto-piedade. Auto-piedade. A mais pura auto-piedade. Lamentável isso.

No meu som agora está tocando Joy Division. Essa foi uma grande banda. Pra quem não sabe, o vocalista se matou. Jovem, muito, muito jovem. Ian Curtis se enforcou quando tinha vinte e três anos, antes de conhecer um sucesso que seria inexorável. Mas ouvir vozes como as de Cazuza, Raul Seixas, Renato Russo, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, e, até mesmo, Curt Cobain, jamais me incitaram qualquer desejo auto-destrutivo. Tenho facilidade em admirá-los sem querer imitá-los – e muito menos a Curt e Ian, que foram suicidas de fato. Também não fico triste em ouvir vozes de mortos. E nunca pensei em me matar, não. Mas quando eu era novo e ficava perto de um trem passando, eu apenas tomava o cuidado de me afastar o suficiente – tinha medo de mudar de idéia de repente e pular embaixo das rodas de ferro. Todas são de ferro. O trem bala tem rodas?

Tive pensando na música do Cazuza, “Ideologia”. “Meus heróis morreram de overdose...”. É verdade, que música boa, que letra... “Meu partido é um coração partido, e as ilusões estão todas perdidas...” . Tenho um coração sofredor como de qualquer poeta desse mundo e de todas as épocas da humanidade. É bem verdade que alguns artistas sofredores viajam para os Estados Unidos, comem ostras e tomam do melhor uísque doze anos todo santo dia. Até pão e água é difícil pra mim: pão não é tão barato assim. Mas tudo bem. Prossigo com minha dor e assisto ao fim da minha poesia. Porque viver poeticamente é o que me parece, às vezes, ser uma insanidade. Pondero, contudo, questionando o que vem a ser sanidade. Como discutir o que é necessidade e o que é trivialidade com seres estranhos como os poetas e artistas em geral?

Não, não. Espere. Que nada. O fim da poesia seria o fim de tudo. Puxa vida! Não é que esse vinho está me fazendo bem...

Então, adeus faturas vencidas, intempéries gerais e, vamos à arte. “Então vamos pra vida...”

Pinturas rupestres. Novos estudos revelam que elas não eram simplesmente figuras funcionais e descritivas de caçadas. Elas eram de fato artísticas. O homem das cavernas tinha poesia. Não se preocupava apenas com sua

sobrevivência. Ele buscava ver o mundo além dos seus olhos, ou, ao menos, retratá-lo além. Já vi essa nova teoria em dois documentários da TV. Só idiotas não conseguem ver a arte funcionar. O homem pré-histórico já sabia disso.

Quer saber? É a poesia o que nos torna humanos. Que mudança... dos parágrafos iniciais até aqui... É a minha teia cultural particular me fazendo recapitular e refletir, e repensar. A cultura é a única fábrica de gente que há. E a cultura é saturada de poesia, música, arte.. Homem e mulher e barriga são ferramentas de moldar bichinhos. Cultura e poesia fazem mais: moldam gente.

“...Eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus...”. Engraçado como, ainda hoje, passada a onda hippie, este verso ainda consegue ser tão forte e belo, em pleno turbilhão capitalista. Nesse furacão vivo onde o dinheiro é o principal deus. Mas quem vive a poesia não precisa de deuses. Só precisa do sonho. Não se pede esmola a um sonho. Não se ajoelha diante de um sonho. Um sonho é uma impressão aumentada. É como o poema – é um superlativo mas não é um deus. É a codificação de um desejo. É a flor silvestre enfeitando o cabelo da moça. É o violão feito de madeira cheirosa. São os acordes desse violão. “Quem tem um sonho não dança”...

Vê só? Esse texto, em princípio, era pra ser um tiro de misericórdia na pobre poesia. Mas me bastaram um pouco de vinho tinto, boa música nas minhas grandes e queridas caixas de som, meu violão... E minha vocação para a felicidade se mostrou umas poucas linhas depois do que parecia ser o fim da estrada – não o fim da vida, fique claro. E estou eu aqui, bem melhor. Mas sei que como “a vida vem em ondas”, assim é com a felicidade. Ondas perfeitas e ressacas. Não se segura uma onda com as mãos.

E, pensando em onda, me ocorreu o verso cantado por Lulu Santos na música “Assaltaram a gramática”, que ele canta com os Paralamas do Sucesso: “...o poeta é a pimenta do planeta.” A pimenta é uma planta única. Ela causa ondas de calor capazes de temperar a vida. Lulu Santos foi o cara que abriu as portas para a geração de rock da década de oitenta. Um desbravador. Também como Lobão e outros. E se até músicas tristes, como as do Joy Division, estão me fazendo feliz agora, o que dizer então da lembrança oportuna dessa alegre canção dos Paralamas... E na tentativa tosca de incrementar um verso irretocável como o cantado por Lulu, eu diria ainda “o poeta é o vinho do planeta”, ou “o poeta é a maconha do planeta” (?!?).

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“Eu sei de quase tudo um pouco, e quase tudo mal” é um verso da canção “Nada Tanto Assim”, do disco Seu Espião, de Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, um dos mais criativos grupos da história da música brasileira.

Joy Division foi uma das mais originais e incisivas bandas de rock que já existiram. Influenciando diretamente vários nomes do rock, como o nosso Legião Urbana, por exemplo. Um ótimo registro do simples e poderoso som deles está no Cd que contém apresentação ao vivo na rádio BBC de Londres.

O álbum Ideologia, de Cazuza traz, na faixa título, os versos “meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder / ideologia: eu quero uma pra viver.” Ideologia é , sem dúvida, o disco mais consistente do cantor e compositor. O disco traz ouro puro, como “Faz Parte do Meu Show” e “Boas Novas”(“...então vamos pra vida / senhoras e senhores, trago boas novas / eu vi a cara da morte e ela estava viva”), entre várias outras grandes canções.

Gal Costa cantava no começo da década de setenta, com um acompanhamento de violão ultra-simples “eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus / e não me importa honey / oh minha honey baby...” . Esta bela manifestação da inocência hippie, consegue, ainda hoje, ter força e ser impactante. E não é pra menos. Ela é recheada de versos de grande efeito psicológico. “Vapor Barato” foi, muito mais tarde usada como trilha sonora para o filme Terra Estrangeira, de Walter Salles. Foi também regravada pelo O Rappa e teve grande parte dos versos inseridos em uma música de Zeca Baleiro, o que finalmente consolidou sua tardia mas merecida popularização e consagração como canção pop.

Na voz de Lulu Santos o país ouviu versos inesquecíveis. A música “Como Uma Onda” é quase um hino para a juventude dos anos oitenta, em busca de consciência. “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia / tudo passa, tudo sempre passará / a vida vem em ondas como o mar / num indo e vindo infinito”. A letra é um convite à filosofia.

“O poeta é a pimenta do planeta: malagueta!”. A música se chama “Assaltaram a Gramática”, e está no disco O Passo do Lui, dos Paralamas do Sucesso, do qual Lulu participa.

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Passados dois dias da minha desilusão poética e angústia criativa – de onde saiu essa pequena crônica –, amanheci com graves, graves mesmo, problemas intestinais. Muita dor e mal estar. O motivo? Vinho. O meu antídoto é também o meu veneno. É terrível constatar, tendo que relembrar de vez em quando, sob horríveis dores, que a minha bebida preferida me faz tão mal. Amo vinho. Gosto de pimenta. Será que existe alguma coisa boa nesse mundo que não me cause tantos efeitos colaterais?

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O vinho que estou degustando no momento se chama “Sky Blue Sky”, o novo disco do Wilco. Delicioso, e, até agora, sem reações adversas.

(LF)

Luciano Fortunato
Enviado por Luciano Fortunato em 27/07/2007
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