Números

Não falarei sobre o livro da Bíblia. Nem sobre número de roupa ou número de telefone. Não é sobre dinheiro. Não é o número daquela casa. Nem número da sorte é. Mas pode ser sobre tudo. É um pouco sobre matemática (ou a sua falta) e seus dilemas, suas problemáticas. É sobre inequação. É sobre inteiros e incompletos. É sobre falta. Ainda bem que podemos chegar ao inteiro, mesmo não o sendo (ou somos?). De que forma? Desfazendo-nos de nossas formas. Pelo arredondamento. Quem foi o primeiro homem que definiu que um sete vírgula nove deveria ser arredondado para um oito vírgula zero? Desculpe-me se faço uso exagerado do numeral por extenso, mas já bastam todos esses números imperfeitos a quererem estar entre palavras inteiras, perfeitas... Por isso expressarei os numerais em palavras: para que aqueles não se vangloriem de ter espaço em um texto. Espaço esse medido em numeral e preenchido com palavras. Para que sua incompletude não salte aos olhos do leitor, da mesma forma que acontece quando vê uma promoção de noventa e nove reais e noventa e nove centavos. Se parece mais barato do que noventa reais, é devido ao noventa e nove reais e noventa e nove centavos ter um ar de estar incompleto, ao contrário do já inteiro noventa reais. Aquele um centavo que falta (ou não falta?) faz muita diferença. Sem ele, não se têm cem reais. Não apenas sem ele, mas qualquer um dos nove mil novecentos e noventa e nove centavos que fazem parte dos quase cem reais. Mas quem disse que esses nove mil novecentos e noventa e nove têm que querer ser dez mil centavos? Quem disse que tem que ser cem reais? Não pode simplesmente ser esse amontoado que ele é? Qualquer número que ele seja, ele é completo. Não o faz... porque ele é. Porque a partir de qualquer altura que medirmos, sempre haverá um algo mensurável, mesmo que não seja medido. E mesmo que movamos a altura da régua, mesmo que suprimamos um número ou acrescentemos um inexistente anteriormente, haverá algo. Não é porque algo - além do numeral - fora criado. Mas porque tudo já existia e porque os números que atribuímos são arbitrários; são nomes em numerais. Porque alguém não quis mais usar palavras e inventou os números. Ou porque queria usar números, além de palavras. Porque o universo tem uma lei, que pode ser estudada independente das convenções humanas. Porque o mar não será mais profundo porque adicionamos um centímetro à régua. Nem porque medimos em metros ou polegadas. Ele é sempre o mesmo. Por que não dizem “vamos arredondar um dez para um onze vírgula quarenta e dois”? Por que arredondamento é, geralmente, para números terminados em zero? Ele é o alfa e o ômega? O marco que divide o antes e o depois dele? O objetivo o qual almejamos alcançar? Se sou um sete vírgula quatorze tenho que ser arredondada para oito vírgula zero? Dir-me-ão que sou imperfeita e incompleta. Que meu objetivo é ser um oito. Redondamente enganados; como um zero. Perdoem-me a mesóclise, assim como perdoo os números redondos. Acham que todos querem ser redondos. Da mesma forma que uma palavra é a mesma, em próclise, mesóclise ou ênclise, um numeral é um numeral. O numeral é ele mesmo. Mesmo sendo irracional, ele não tem a obrigação de ser racional. Se assim o querem fazer ser, é para resolver seus próprios problemas. Mas o numeral, em si e consigo mesmo, problema nenhum tem. Se não o fosse ele mesmo e se a régua subisse, outro numeral ocuparia seu lugar. Outro numeral seria o que ele jamais poderia ser. Afinal, tudo o que ele é, é o que deve ser. Os números são sempre eles mesmos. O “espaço” que ele ocupava nunca estaria vago. O “espaço” nunca existiria. Mas o numeral sempre existe. Desde antes da medição da régua. Um numeral é sempre ele e, mesmo que se queira suprimi-lo, ele existe. Sua existência não depende da régua, depende apenas dele. A consciência reconhece sua existência, mas ele existe independente de ela o reconhecer. Mesmo que não tenha um lugar na régua, pois a régua não abrange as possibilidades, apenas o que ela alcança. Os centímetros da régua só podem medir aquilo que se relaciona com eles. A régua não pode dizer que todos os números que ela não conhece não existem, posto que é limitada. Além de ser finita, não abrange as medidas infinitesimais e nem as infinitas grandezas astronômicas. Não sabe marcar em seu corpo a progressão geométrica. A harmonia, para ela, é a separação de centímetros em centímetros e de milímetros em milímetros. Harmonia essa que não conhece outras leis, não conhece outras regras. As regras dos outros. Segue apenas a sua própria. Vamos quebrar a régua. E vamos quebrar as regras. Ainda que a considerássemos apenas para conviver com outras réguas, não seríamos livres. Pois medimos tudo com nossa régua sendo que certas coisas têm outras formas de serem medidas para fazerem sentido. Porque sua intensidade é decibéis, e não joules. Sua distância é milhas, e não litros. Seu cálculo é taxa proporcional, que, assim como toda operação matemática, utiliza as medidas da régua, porém, de diferentes formas, em diferentes “ritmos” e diferentes escalas e que nem sempre obedece às medidas da régua. Ninguém poderá me dizer que preciso chegar a oito. Se eu fosse oito, já não seria sete vírgula quatorze. Já não seria mais eu. Como se o oito fosse melhor que o sete vírgula quatorze. Se eu fosse oito, seria oito. Então eu seria oito. E seria eu. E, novamente... eu, que, intermitentemente, eternamente, infinitamente e inevitavelmente... para mim:

eu sempre sou.

Ka Y
Enviado por Ka Y em 19/11/2016
Reeditado em 19/11/2016
Código do texto: T5827996
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