"Hipocrisíada" = Poesia


Logo após ter sido decretada a sua falência,
Ele foi perdendo todo o muito que acumulara
Menos aquilo que de berço já trazia: decência
A decência, dignidade, e sua vergonha na cara

A esposa, a carinhosa, a amiga, A Companheira
Preferiu pedir-lhe o quanto antes a separação
Desgostosa por não poder continuar gastadeira
Sem vontade alguma de passar por humilhação

Seus filhos, desconhecendo toda solidariedade,
Argumentaram ter logo que cuidar de suas vidas
E em poucos meses, nada mais havia de amizade
Sumiram de sua vista todas as caras conhecidas

Suas roupas ficaram puídas, os sapatos furados
Carros vendidos, muitos valores desaparecidos
Parentes aproveitadores, agora já bem afastados
Não encontrou nem aos menos os seus conhecidos

Desgostoso em demasia, triste, tornou-se calado
De ninguém reclamava nem algo simples solicitava
Até que um dia, resoluto, banhado e bem barbeado
Foi para a rua, a rua que mais um morador ganhava

Andou a esmo por muitas ruas e muitas avenidas
Gastou o muito pouco que de solas lhe sobraram
Olhando para os rostos, os corpos, várias vidas
Que, apressadamente, por seus olhos passaram

Ao sentir-se esgotado, com as forças já esvaindo
Procurou na metrópole um canto mais sossegado
E em pouco tempo estava no chão, logo dormindo
Como se a isto já estivesse bastante habituado

Não sentiu dor, revolta, injustiça, ou descrença
Apenas se deitou e em bem pouco tempo dormiu
Sem analisar que na calçada podia pegar doença
Mal caíra no sono, sonhou: viu um Anjo que sorriu



Mas o Anjo não viera até ele para apenas sorrir
“Trago-lhe uma séria mensagem: a nova chance
Em breve lhe surgirá. A sua nova vida há de vir
Não deixe que a nova sorte lhe fuja ao alcance”

O Anjo sumiu de repente. Decerto ao céu voou
Ele ouviu um baque surdo, e, na escuridão total
O novo mendigo abriu os olhos, depressa acordou
“Sonhei com um Anjo! Um belo Anjo bem celestial...

O que será esse tal barulho que me despertou?
Parece alguma coisa que do viaduto veio abaixo
E que bem ao meu lado, com violência, desabou
Vamos ver se no escuro percebo, ver se o acho...

Minha nossa! Um homem morto bem ao meu lado!
Credo em cruz! De lá de cima desse tal viaduto
Ele deve ter pulado...Ou, pior ainda, sido jogado..
Vamos ver localizo a família que chorará de luto

Apalpando os bolos do falecido, achou a carteira
Documentos, não tem..Dinheiro nenhum...um jogo
Um bilhete de suicida, com bem sucinta explicação
Ao fim da mensagem, um singelo e mal escrito rogo

Por respeito à privacidade daquele que quis morrer
Não contarei o conteúdo do bilhete por ele deixado
Direi apenas o que com o rogo ele queria ao falecer
Com um belíssimo monumento ser sempre lembrado

“Quem encontrar em meus bolsos o jogo premiado
Que seja bem feliz com os milhões que representa
Mas dentro de um ano, um ano inteiro bem contado
Quero monumental mausoléu de bela cor cinzenta”

Mais do que depressa o quase mendigo se levantou
Correu para um bar aberto durante toda madrugada
E na suja e maltratada pia seu rosto e as mãos lavou
Sorriu feliz para o espelho, para sua cara maltratada

Esperou em pé, horas e horas, ansioso, a Caixa abrir
Correu para o balcão de atendimento e informou-se
O que teria que fazer para seu belo prêmio garantir
Documentos? Ele os tinha todos. Assim sossegou-se.

Jogo conferido. Conta aberta. Dinheiro nela colocado
Voltou de táxi para a antiga residência agora deserta
E providenciou para que todo seu imóvel fosse murado
Impedindo as visitas que agora chegariam. Coisa certa.

Dois guardas na entrada, profissionais bem competentes
Com ordens de tratar com rispidez, com total grosseria
Todos que viessem, principalmente dizendo-se parentes
Não queria saber de ninguém, a ninguém mais receberia

“Papai, estou morrendo de saudades e de preocupações
Está difícil viver sem ver você, sem saber como está indo
Isso está mesmo machucando os nossos pobres corações
Difícil ficar longe de tão bom papai, papai assim tão lindo”

“Querido, pensei muito em nosso amor, após a separação
Cheguei à conclusão de que errei, pequei contra nós dois
Mas sei que mereço uma nova chance deste seu coração
Vamos voltar a viver juntos e felizes? Responda depois”

“Cunhadão velho de guerra!! O nosso time papou a taça!
Eu não te liguei antes, compadre, por sabê-lo ocupadão
Vamos ver neste domingo o Timão jogar com toda raça
E fica por minha conta toda a despesa da comemoração”

“Prezado sr. Fulano de Tal, temos a mui grata satisfação
De comunicar-lhe que, revendo nossos arquivos comerciais
Chegamos finalmente à absoluta, mais que justa, convicção
De que o senhor, de nossos clientes, é o bom, o mais capaz

Assim sendo, resolveu nossa Presidência, após uma reunião
Colocar ao seu alcance, à sua disposição, um novo e inédito
Plano especial de total e duradoura comercial estruturação
E está esperando por sua visita um bom sistema de crédito”

Os parentes rodeando a sua casa, agora totalmente murada
Em contato querendo entrar com urgência até urgentíssima
Encontravam apenas os seguranças com suas caras fechadas
A que procuravam agradar chamando até de gente finíssima

Nenhum contato com ele, novamente milionário, conseguiam
Mas desistir disso era a idéia que a nenhum deles ocorreria
Em todo mundo, por forte que seja, um fraco encontrariam
Os dias se passavam, corriam depressa, e nenhum desistia.

Um dia ele chegou ao portão de sua casa, ainda indevassada
Convidou a entrar todos seus amigos, vizinhos, e os parentes
Tinha para eles uma importante e boa notícia a lhes ser dada
Maravilhas tais que precisavam ser tratadas e bem urgentes

“O dinheiro que agora possuo, confesso-lhes, caiu-me lá do céu
Tenho que devolver uma parte dele, porém de uma forma certa:
Comprometi-me a construir no cemitério um fabuloso mausoléu
E comigo contribuirá todo aquele que se julgar gente esperta.”

Mais do que depressa se cotizaram, combinaram, e organizaram
Maneiras mil de levantar, e depressa, o dinheiro tão necessário
Nenhum titubeou ou argumentou, a ajudar todos se apressaram
E logo, com sacrifício de muitos, levantou-se todo o numerário.

Algum tempo depois o mausoléu majestoso chamava bem atenção
Destacando-se entre as humildes campas ou as suntuosas capelas
Como se ali estivesse repousando o corpo de um faraó ou de sultão
Sendo, entre todas as construções, a mais bela de todas as belas

Trasladou-se para ali o corpo, logo após inauguração do mausoléu,
Do desditoso ganhador da loteria, que resolveu tornar-se suicida
E na faixa de pêsames, cheia de dizeres sinceros, citava-se o céu
E os votos de que onde estivesse, gozasse de uma ótima outra vida

Todos os contribuintes estavam presentes no  dia da inauguração
Imaginando de que maneira seriam pelo milionário considerados
Cada qual mais feliz que o outro, já gastando muito por antecipação
O dinheiro que haviam empatado, cujos lucros multiplicados.

Ao retornarem do cemitério, a cerimônia finda, o enterro já feito,
Retornaram  em uma caravana à casa do novamente milionário
Mas de longe já estranharam a quietude, o silêncio e mesmo o jeito
Do imóvel sem os conhecidos seguranças, aspecto bem solitário

Passaram o grande portão de metal, encontraram a porta aberta
Invadiram educadamente o imóvel em busca do proprietário
“Ele está brincando conosco...Escondeu-se para rir de nós, na certa
Olhem, os móveis sumiram! Não há mais nada. Nem um armário...

Mas ele é gente boa. Sabe que cumprimos a promessa, o mausoléu
E não é um ingrat, dos que desconhece os amigos e a parentada
Gente boa de verdade, daquele tipo que faz por merecer o céu
Estará brincando conosco. Aprontando-nos só uma tratantada

Uma das cunhadas descobriu em uma das paredes da cozinha
A mensagem derradeira ali deixada, escrita em letronas garrafais
Que amigos, parentes, ex-sócios, desculpassem qualquer coisinha
Mas a ele, graças ao seu dinheiro, eles não reveriam. Nunca mais.


Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 28/07/2007
Reeditado em 28/07/2007
Código do texto: T582835
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