Meu rádio-relógio

Foi uma longa viagem, da Malásia às minhas mãos. Talvez tenha passado primeiro pelo Paraguai. Fato é que, depois de muitos sortilégios, ele foi parar em uma vitrine de uma loja de departamentos no interior de Santa Catarina. E lá estava quando chamou a atenção da minha avó, que procurava um presente em comemoração à Primeira Comunhão do neto. Acabou escolhido, foi embrulhado e entregue no dia da festa. Lá se vão 18 anos, ele já chegou à maioridade e continua comigo: meu rádio-relógio.

É sem dúvida um feito extraordinário que um aparelho eletrônico dure tanto tempo assim. Que era o Brasil há 18 anos? FHC se reelegia, a seleção perdia a final da Copa para a França, a filha da Xuxa nascia, assistíamos ao surgimento de grandes ícones da cultura popular, como a Tiazinha e o Padre Marcelo. E eu lá, ganhando o meu rádio-relógio. Se ligasse o rádio nessa época, ouviria o Terra Samba, o Claudinho e Buchecha, o Só Pra Contrariar. Tudo isso já é memória, ficou para trás, mas ainda tenho o mesmo rádio-relógio sobre o criado-mudo.

Naqueles tempos mesozóicos, não havia ainda aparelho celular, de modo que era realmente através do rádio-relógio que eu despertava toda manhã. Mas não com aquela buzina irritante, um convite ao infarto. Acordava ouvindo música mesmo. E dormia ouvindo música também, colocava na função Sleep e relaxava. Era muito prático também como relógio, só bater o olho e já se sabia as horas, mesmo que acordasse de madrugada. A avó acertou em cheio, era realmente um presente bastante útil.

Ele me acompanhou quando nos mudamos da casa da minha infância. Foi comigo para Curitiba, quando achei que havia um futuro por lá. Não o levei para Brasília no início, mas senti falta e acabei levando depois. Foi também na capital do país que ele começou a apresentar os primeiros sinais da velhice. De repente o OFF parou de funcionar e eu só conseguia desligar pela função Sleep. Também por essa época eu comecei a sofrer de insônia e achei que não ajudava em nada ficar olhando para aqueles números vermelhos enquanto tentava pegar no sono. Passei a virá-lo para o outro lado antes de me deitar. Ele se ressentiu, eu sei, dali a algum tempo também o botão de ON começou a falhar, o que me obrigava a usar o alar-me para ligar o rádio. Como não dormia, eu também não precisava dele para acordar, mas sempre ligava de manhã antes de ir ao trabalho, enquanto comia aveia com leite.

Há alguns meses eu voltei para Curitiba e ele comigo. Senti que ele estava cansado de viajar para lá e para cá. Sua forma de protestar foi acender todas as luzinhas ao mesmo tempo. Não há outro remédio senão tirar da tomada e tentar de novo. Ele funciona durante cinco, dez minutos, e então volta a falhar. Mesmo assim, ainda não desisti totalmente dele. Estou pensando em mandar para consertar, será que eles terão as peças? Puxa, não queria me desfazer dele. É a coisa mais velha que eu tenho comigo. Mudei de cidade, mudei de crenças, e ele sempre lá, fielmente, mostrando as horas. Tinha, inclusive, o cuidado de me avisar das quedas de energia, ocasiões em que ficava piscando desesperadamente. Um bom companheiro, afinal. E 18 anos, vocês sabem, não são 18 dias.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 20/11/2016
Reeditado em 20/11/2016
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