Mais um dos Zé ninguém.

Já entrava lá pelo meio-dia, e naquele ônibus tudo parecia tranquilo, ou talvez seguro fosse o melhor adjetivo. Tudo ia bem até que o filho da puta pediu parada. Talvez estivesse naquele ponto desde cedo, ansioso para que algum daqueles parassem e ele, então, pudesse fazer o que fez no ônibus "agraciado": o meu.

Já estava cansado, e tanto pra lá de impaciente: por que é que diabos o sol é tão mais quente do lado de cá?! E olhe que sempre preferi o calor ao frio. Sempre. Mas é que, assim como tudo de mais é veneno, o calor também não foge à regra. Mas voltemos.

Daí então ele, repentinamente, consegue parar o ônibus e já está cá, dentro. Não pagou, como normalmente fazem os "normais". Não. Entrou pela porta especial, aquelas que existem para dar mais acessibilidade aos pobres deficientes. Lá está ele pedindo:

- Motô, me deixa eu ficar aqui. Só tenho esse papel aqui sem nada, to sem dinheiro. Beleza?!

Ocorre, porém, que, por estar dormindo ou acordando do leve cochilo não ouvia a sua história, nem o que lhe havia acontecido. Apenas sei que diante de mim estava ele, todo mal-encarado estava ele. Olhar de quem gostava de maldade. E de cor, tudo isso serviram como espécies de agravantes para que meu sinal de alerta começasse a piscar. Pensava:

- Por que este motorista filho da mãe deixou esse ser entrar?!

Como pode?! Só sendo mesmo um idiota. Reitero: um completamente idiota para deixar alguém daquele estado - sem nada- e daquela aparência subir no ônibus. Era rezar por assalto.

À proporção que o ônibus ia, tinha a impressão de que ele volta, isto é, ia que aquele amável motorista estava dando marcha à ré, visto que meu ponto de descida ficava cada vez mais longe de mim, e, assim, eu ficava cada vez mais aflito. E pensava: culpa deste filho de uma égua, se eu for roubado, ele me paga! Literalmente me pega.

E ia olhando-o, como um cão farejador, estava um pouco longe, mas nada que me impedisse de enxergar os detalhes nele. E de estar cada vez mais convicto de que aquele ser iria fazer nada agradável.

- Aboy, lá o bicho pega, é neguin cortano a cabeça de neguin, é gente com faca, facão, foice, revolve tem de tudo lá; aquilo é um filme de terror, uma prévia do inferno.

Respirei fundo. Pausei. Novamente vieram-me os pensamentos negativos, e agora com sentido: era um criminoso! Um ladrão! Estava diante de um assassino nato, alguém que no semblante não me passava nenhuma imagem confiável. Aqui, sentado. Não sei o que faço: se corro, peço parada. Se xingo o filho da puta do motorista ou se –pasme o leitor- vou até aquele sujeito mal caráter e digo: BEM FEITO! VOCÊ DEVERIA APODRECER LÁ SEU VERME! NEM SEI QUEM VOCÊ É MAS TE ODEIO!

Sim, tive diversas dessas vontades. Mas tudo sumiu quando ele, o criminoso, aliás aquele EX-criminoso, sim EX, porque ele, só no fim de tudo isso, já perto de descer, foi deixando as coisas mais claras: havia sido condenável por furto simples, mas pagou e a partir dali era um homem livre. Sim, aquele papel em branco nas mãos era a sua liberdade. Era o seu primeiro dia, enfim, livre das grades e de todo o terror que há nela. Estava sem passagem, sem dinheiro, sem roupa, sem ninguém, senão com uma vontade desesperada de chegar a sua casa, na sua rua e anunciar que daquele dia em diante era um homem livre e disposto a tentar outra vez. Um reiniciante.

Foi, então, que vi nos olhos dele não mais maldade, mas um misto de tristeza, revolta e uma leve esperança. Ele era só mais um dos Zé ninguém, do qual desconfiamos e julgamos, mais um dos Zé ninguém que são julgados e condenados inúmeras vezes pela vida, pela sociedade, pelo Estado, pelas pessoas, pelos desconhecidos e pelos os mais próximos. Ele era apenas mais um dos Zé ninguém que dia a dia aprisionados, esquecidos e não notados. Mais um desses Zé ninguém que precisam pedir carona nos ônibus da vida até chegarem ao seu destino, por serem postos em liberdade sem qualquer dignidade, tendo, ainda, o desafio de reescrever uma nova história, mesmo quando já tentam convencê-los de que já há uma predestinada para eles.

WandresonRocha
Enviado por WandresonRocha em 21/11/2016
Código do texto: T5830203
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