A mulher de sorte

A mulher de sorte




Correndo pelo mundo, olhando pelos lados, lendo a respeito, sofrendo de empatia com as proximidades vê-se, como se vê uma libélula, uma mulher de sorte. Cada qual está numa linha de tempo e imbuída do que se chama faixa de compreensão. Posso ser uma manteiga rançosa, mas estou no seu lado do pão, disse-lhe um homem qualquer. Tem pessoas que aprendem com a vida, outras precisam da palavra escrita. Leni Riefenstahl viveu 101 anos, durante dado período foi a queridinha de Adolf H. e seus sequazes, passada a febre deve ter pensado sem cessar, oh céus, não dá pra voltar atrás, é como destocar a buzina que acabou de tocar. Ora, se a base de toda depressão significa a falta de consciência da Alma e se a segurança do cidadão está na sobriedade do acusador, Anita Pallenberg se engalfinhou com os Stones durante os 60 e tudo fluiu a contendo, até que em 1979 um garoto de 17 anos chamado Scott Cantrell caiu na cama dela, rumores dizem, nada ficou provado, que depois da dama lhe oferecer um tranco de farinha e outro de heroína, colocou um revolver na mão do rapaz e sussurrou: se acaso me quiseres, vamos brincar de roleta russa. Cantrell foi pro cemitério e ela driblou um processo. A vida apresenta piadas temerárias a homens e mulheres. Você conhece aquela do garçom? Bem, ele está servindo num jantar da igreja, lotado de padres, bispos, arcebispos, cardeais, então vira para o padre e indaga como se tornar um. O padre explica que precisa fazer o voto de pobreza. O garçom olha ao redor e suspira: fico imaginando como seria o voto de castidade. Foi um homem, provavelmente nascido de mulher, que formulou a frase: "É mais fácil lutar pelos princípios do que viver de acordo com eles" (Alfred Adler). Por ventura um sujeito embriagado tenha decorado uns versos de Coleridge e sussurrado nos ouvidos de uma mulher já enfarada com tanta tagarelice: "Mas Ah!, que báratro romântico, inclinado Na encosta, de través no cedro frondejante! Lugar inóspito! Tão mágico e sagrado Como o que fosse, no minguante, visitado Por mulher a clamar por seu demônio-amante!” Quem sabe ela tenha dito vade retro e saltado uma linha do tempo, ciente de que este nada mais é do que substância criada por meio da formação de imagens holográficas, e se viu em 1956, aos 20 anos, uma vida deslumbrante pela frente com reveses lancinantes mais adiante, então de repente sozinha num leito hospitalar em 2016, aos 80 anos, um torvelinho lhe mostra o crucial ponto de interrogação: o que foi tudo isso? Um sonho? Samuel Taylor Coleridge escreveu o “Kubla Khan” às 4 da manhã. Ele estava dormindo até que algo, numa madrugada de 1798 o tirou da cama e de estalo saiu o célebre poema. O que se pensa no hospital após 8 décadas? Decerto um amontoado de imagens pelo retrovisor, cada vez mais distantes. Sem mencionar a eterna pergunta: fui boa o suficiente? Ela ainda não possui no seu sistema a clareza do conceito de ser um aspecto individualizado da energia da Fonte. Assim, como não poderia ser suficiente? Memórias dançam na sua frente, além da sensação de uma indiscutível experiência formidável que, necessariamente, não se restringe a condição de ser mulher ou homem. Talvez na próxima vida retorne num corpo masculino, apenas para poder dizer de modo morno em aleatória situação: hei, psiu, tenho uma notícia importante para lhe dar: Você se parece com um deles, mas fala como um dos nossos.


(Imagem: William Nicholson 1872 - 1949) 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 29/11/2016
Reeditado em 12/06/2020
Código do texto: T5837988
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