A mensagem na garafa

Durante os anos 90, quando a internet era restrita a um contingente muito menor de usuários que hoje, era relativamente fácil aos que se conectavam deparar-se com pessoas extremamente influentes, que também se encontravam meio perdidas, vagando pelas proximidades, curiosas sobre a novidade.

Foi, provavelmente, no chat de um site de xadrez em que eu costumava entrar no final dos anos 90, que me envolvi em uma conversa surpreendente e interessante da qual lembro apenas superficialmente.

Meu interlocutor falava, com admiração e brandura, de um homem muito idoso e doente que tinha vivido uma vida tão virtuosa quanto próspera, da qual, à beira da morte, se orgulhava imensamente, o que o reconfortava naqueles momentos finais deixando-o surpreendentemente satisfeito em situação tão adversa, apesar de uma queixa. Tendo vivido uma vida exemplar da qual se orgulhava, ressentia-se da expectativa de que tudo estivesse prestes a esvair com ele; que sua morte levasse com ela a lembrança de todos os seus atos, sua memória, e todos os rastros deixados por ele em sua vida tão digna e meritória, apagando tudo.

Comentei, embalado por certo espírito contagiante, que achava não poder haver prêmio maior que o de chegar ao final da vida tão satisfeito, que essa já seria a maior de todas as recompensas possíveis, reduzindo, ou tornando desnecessárias todas as outras.

Longe de discordar de minhas interpolações, meu interlocutor comentou ter apresentado quase exatamente as mesmas ponderações ao venerável senhor, considerações que o outro, por sua vez, também já havia apreciado, mas que não lhe eram, de todo, convincentes, restando sempre a insatisfação decorrente de certa sensação de inutilidade, ou indiferença, apesar de toda uma vida transcorrida sob a égide da dignidade, da bondade e demais signos de retidão e grandeza.

Referiu-se, então, com certa tristeza, à impossibilidade de que memórias tão louváveis pudessem deixar de se perder, de se apagar, como se não merecessem mais que outras, como se nunca tivessem existido; fato cuja inexorabilidade, longe de compelir o venerável idoso à aceitação resignada, mais o espicaçava a uma quase insubmissão contra o que se lhe afigurava certa injustiça.

Tenho uma antiga implicância com a palavra “impossibilidade”, tendo sido essa provavelmente a causa da alfinetada que me fustigou a buscar solução enviesada. Argumentei, então, primeiramente, contra as “impossibilidades”. Penso que elas costumem ser frutos de nossa mente, muito mais frequentemente que do mundo; suponho que sejam, usualmente, decorrentes de nossas incapacidades, não da realidade. Considerei a normalidade de 100 anos antes, quando a iluminação elétrica era um sonho e os motores a explosão estavam sendo ensaiados. Comentei sobre as impossibilidades de então, como o voo de uma máquina, a comunicação à distância, e todos os surpreendentes desenvolvimentos tecnológicos decorrentes da eletricidade, hoje tão banais, na época tão inimagináveis.

Meu interlocutor, um homem inteligente e culto, assim como aquele a quem, de certo modo, estava a representar, comentou já ter elucubrado com o outro questões análogas, aventando desenvolvimentos futuros inovadores, tendo concluído, no entanto, que a recuperação dos registros de uma vida já passada era, de fato, impensável; que tal impossibilidade era realmente definitiva, sendo inimaginável qualquer sonho capaz de viabilizar a menor esperança sobre tamanha bizarria.

As impossibilidades realmente me incomodam. Comentei que antes da existência, todas as coisas nos parecem impossíveis, dado que igualmente impensáveis: como deve ter sido absurda a suposição de uma máquina voadora, considerei. Aventei então outro fato ainda mais estarrecedor. Imaginemos um troglodita informado de que um registro seu acabaria por ser recuperado, milhares de anos depois, revelando aspectos de seu mundo, sua vida.

A tecnologia elétrica tem pouco mais de cem anos, nenhum de nossos artefatos elétricos tem muito mais que tal tempo. Podemos esperar tecnologias espantosas nos próximos 100 anos. Depois disso, o que virá será impensável. Nem ao menos podemos conceber o que pode vir a surgir no futuro. Em 200 anos o mundo parecerá tão assombroso a nós quanto aos trogloditas, incapazes, ambos, de ao menos imaginar os tipos de inovações ainda por vir.

Considerei, então, uma hipótese absurda, embora racional e, em certo sentido, viável.

Tudo o que fazemos, todas as nossas ações geram registros no mundo. A luz que refletimos percorre o espaço infinito até se perder nas imensidões. Tudo o que fizemos um dia foi registrado, e esse registro percorre o espaço indefinidamente. Não temos a menor ideia de como seria possível resgatar essa informação distante, já quase tão longínqua quanto qualquer uma deixada pelos trogloditas. A tecnologia, no entanto, é absurdamente surpreendente, e capaz de proezas inimagináveis, não temos dúvida. Será a tecnologia de 100 anos suficiente para superar a impossibilidade de resgate de memórias passadas? Para 1000 anos somos obrigados a projetar uma tecnologia impensável, cujas façanhas não conseguimos nem ao menos antever.

Minhas ponderações causaram certa impressão em meu sábio interlocutor, e o animaram a ponto de repassá-las ao senhor, à beira da morte, que havia ensejado toda a conversa.

Dias depois, o homem retornou, satisfeito, à minha procura. Contou-me que minha ideia tinha sido muito bem acolhida; que a sugestão de desenvolvimentos tecnológicos futuros surpreendentes tinha sido recebida com entusiasmo pelo idoso, que já havia presenciado a superação de inúmeras outras “impossibilidades” anteriormente inacreditáveis; fato mais relevante que a necessidade de se agarrar àquela última esperança.

Também explicou que o acolhimento da ideia reconfortante possibilitou o reavivamento da convicção de que sua vida, tão memorável e digna, afinal, não teria passado em vão e que sua memória seria eternizada, dissolvendo toda a sua angústia. Livre da aflição causada pelo receio da anulação, de seu desaparecimento puro e simples, sem vestígios de seu passado laborioso e digno, pôde se entregar, confiante e satisfeito, à morte, seguro e orgulhoso da própria retidão..

Tendo narrado a coroação com o final feliz de uma vida muito justa e honrosa, meu interlocutor me agradeceu por ter possibilitado a solução para o problema angustiante, mas voltou a me fustigar com certa dúvida. Apesar do bom andamento que o caso tomou, ainda lhe assaltava o receio de que toda aquela conversa não tivesse passado de enganação; que aquelas palavras não tivessem sido mais que um paliativo para enganar um velho à beira da morte, o que lhe causava certo desgosto.

Respondi, convicto, que podemos ter poucas certezas; que não podemos nem garantir que a humanidade ainda existirá em 100 anos. Mas reiterei minha convicção de que, com tempo suficiente, todas as impossibilidades acabarão por ser superadas; que o tempo é maior que todas as nossas dúvidas.

Ele, mais uma vez, acabou por se render a meus argumentos, comentando que eu mostrava pontos de vista simples e convincentes. Também confessou ter ficado surpreso com a acolhida que a ideia tinha tida pelo homem que, ele me revelava, tinha vastos conhecimentos científicos, muito maiores que os dele próprio, fazendo recear que considerações dessa natureza fossem parecer ingênuos para ele, o que não ocorreu.

Disse-me então estar imensamente agradecido, que prezava muitíssimo àquele bom homem ao qual eu tinha prestado enorme serviço, pelo qual gostaria de me retribuir, recomendando-me que eu sugerisse algum presente. Disse-lhe que tinha gostado muito de toda aquela história, e que ter podido ajudar daquela maneira constituía para mim retribuição suficiente; o reconhecimento por ter propiciado a satisfação do bom homem em seus momentos finais, conforme descrito por ele, me alegrava o suficiente, sendo-me desnecessária qualquer outra gratificação.

O homem disse-me então ter muitas posses, de maneira que lhe agradaria satisfazer desejo meu que, qualquer que fosse, não lhe pesaria no bolso.

Agradeci, mas tive que lhe dizer que, naquele momento, minha vida ia muito bem, e que eu não precisava de nada. Tenho pouquíssimas necessidades de consumo, e, por aquele tempo sentia-me bem sob todos os aspectos da vida.

Ele então me revelou ser um homem extremamente influente. Sabendo-me brasileiro, esclareceu ter poderes além dos que eu pudesse imaginar, de maneira que eu poderia fazer qualquer pedido; ofereceu-se para satisfazer qualquer desejo que me viesse à mente, me compelindo a fazer um pedido, fato para o qual, naquele momento, eu já não estava dando atenção.

Devo ter-lhe contado uma história que eu inventara e costumava repetir por essa época, do homem que, tendo libertado um gênio de uma garrafa, abdicou de dois desejos, exigindo do gênio apenas um: que o fizesse feliz.

Mesmo assim, creio ter havido certa solenidade, quase uma compulsão para que eu enunciasse algum pedido, impondo certa gravidade à conversa, me obrigando a considerar com atenção o pedido que me era imposto com determinação, talvez até impaciência.

Pensei, então, por uns segundos e respondi que, nesse caso, não faria um, mas dois pedidos, coisa com a qual ele concordou, desejando saber quais eram.

Fiz então a seguinte consideração: sendo ele um homem tão influente, com frequência deveria encontrar pessoas precisando de sua ajuda; nesses casos, poderia satisfazer seus desejos, impondo àqueles a quem tivesse ajudado e que se vissem gratos e desejosos de retribuir, a obrigação de encontrar outros dois aos quais eles pudessem satisfazer os desejos, comprometendo-os, por sua vez, a encontrar outros dois que recebessem auxílio análogo. Assim, uma vez que eu não me via necessitado de qualquer coisa que eu não possuísse, considerei muito mais útil e gratificante não só satisfazer os desejos de duas pessoas que os necessitassem, mas comprometê-los, ainda, a repassar a tarefa para outros 2 que, por sua vez, viessem a repassá-la.

O homem percebeu certa peculiaridade na proposta, que eu esclareci mostrando que tal ação, embora aparentemente limitada, acabaria atingindo proporções imensas, caso repassada para 2 outros por cada um dos que houvessem recebido a incumbência. Creio que o inusitado da proposta o tenha agradado, percebendo também não haver em mim soberba, mas apenas o reconhecimento de certas futilidades usualmente despercebidas.

Também suspeito que ele tenha vislumbrado em meu futuro certas instabilidades que acabariam por me fazer um dia necessitado das benesses que naquele momento eu recusava. Talvez, naquela ocasião, não fosse necessária muita sabedoria para a percepção de tal fato, sendo tal conclusão bastante evidente.

Creio ter havido um filme, nesse ínterim, talvez incitado por tais venturas, vou ver se assisto.

Como a roda da fortuna frequentemente nos traz surpresas, encontro-me em situação na qual o auxílio de meu agradecido interlocutor do passado bem me cairia nesse momento. Lanço, assim, essas palavras ao mundo, como uma mensagem em uma garrafa jogada ao oceano, ou como um registro luminosos percorrendo o espaço indefinidamente, com a esperança tênue de que possam vir a ser recuperadas pelo meu grato benemérito de tempos passados.