Sem beijos na mão ou A morte de um gentil

Sem beijos na mão ou A morte de um gentil

Eu ando perplexo há muitos anos pela falta de gentileza, educação e respeito que destroem o edifício da nossa vida civilizada. Sou brasileiro nato nascido em São Gonçalo, Estado do Rio de Janeiro. Amo minha terra e meus conterrâneos (ou eu deveria dizer conterráqueos?). Somos a Humanidade ainda que não aceitemos isso.

Lido com todos os tipos de pessoa. E, normalmente (ou pelo menos a princípio), acabo por me afeiçoar a quem lida comigo. Quando isso não é passível, procuro resolver o incômodo ou me afastar da situação. Nunca consegui entender ou sentir o porquê de tanto se agredir. Seria a culpa do medo, da vaidade ou de tudo isso é mais outro tanto?

Por que não se leva em consideração o outro, a não ser como alvo de intriga, maledicência, interesses egoístas...? Por que não nos lembramos das pequenas promessas que fazemos sempre? Eu pergunto a todos e a mim mesmo. Seria a memória um artigo de luxo também? Pior é descobrir a minha capacidade de esquecer e de não atender aos conselhos e dicas de pessoas queridas por mim. Acabo por ser tragado pelo turbilhão da indiferença e do egocentrismo. Tentarei me redimir nas linhas abaixo onde farei o possível para escrever sobre alguém real e falecido, cuja existência foi transformada por mim em personagem duma crônica chamada “O Beija Mão”.

Beija Mão era um homem diferente de todas as pessoas que conheci. Ele tinha a gentileza e a delicadeza de pouco dos loucos espalhados pela Terra. Quando escrevi sobre ele, mostrei o texto ao meu sobrinho mais velho. O garoto gostou e, como aprendera a ser gentil e atencioso, prestou bastante atenção à minha leitura. Tanto que foi por sua boca que recebi a notícia do falecimento de Beija Mão.

Estava em casa ao computador, quando o rapazinho filho mais velho do meu irmão adentrou o recinto.

- Tio! Você sabia que aquele homem que beijava a mão de todo mundo e pedia benção morreu?

- Ele morreu? Foi infarto? Atropelamento? Ele não prestava mesmo atenção quando andava por aí... Que coisa triste.

O menino teve a delicadeza de me ouvir. Quando terminei, ele me disse:

- Tio, não foi assim que ele morreu!

- Se não estava doente e nem foi atropelado, então foi atacado por um cachorro, um raio caiu na cabeça dele?

O garoto novamente me ouviu e, com aquele olhar de paciência e maturidade precoce instantânea e repentina dos menores de idade, falou grave e ao mesmo tempo doce de maneira a evitar o meu sofrimento.

- Tio, você não vai gostar de ouvir, mas mataram esse homem...

- Quem disse isso para você?

Confesso não lembrar a resposta do rapaz. Fiquei perplexo. Ele continuou falando e lamentando o ocorrido. Ele fora a minha casa somente para me avisar sobre isso e, ao mesmo tempo indagar de mim o motivo da barbaridade. Ele me contou porque Beija Mão morrera. Um assaltante se irritou pelo fato dele ter lhe pedido a benção e lhe beijado a mão. Meu sobrinho, nesse momento, já era um homem mais velho do que ainda serei. Inconformado desabafou sua indignação como um ancião. Relembrou-me, inclusive, de algo já narrado a mim por ele mesmo.

Enquanto brincava na rua com as outras crianças, nosso personagem passou. As reações foram diversas. Uns corriam, outros fingiam não o ver. Uns caçoavam do homem. Restou o neto do meu pai. A única pessoa, naquele momento, a permitir o contato. Ele beijou a mão da criança e pediu benção! O guri aceitou sem resistência e com compaixão. A reação dos demais não foi unânime. Houve os que se sentiram envergonhados. Outros viram no moleque alguém especial. E, claro, houve os críticos cruéis sempre de plantão perpétuo vinte e quatro horas por dia a vida inteira. “Sua mãe sabe disso, garoto? Vai pra casa lavar as mãos muito bem lavadas. Você não tem que aceitar falar com estranhos”. O menino estranhou essa atitude. Não era essa a orientação recebida em casa. Ele deveria ser prudente sim, mas não grosseiro e cruel. Lembro-me do seu irmão mais novo dizendo “Só Yuri que fala com ele e não foge quando ele vem”. Minha cunhada sabia do comportamento do filho e nunca o reprovou.

A conversa não havia acabado. Ele sugeriu sabiamente a criação de um novo texto onde eu falasse sobre a morte desse homem inofensivo. Nunca me esqueci da incumbência. Faltava-me a coragem e a capacidade de falar sobre assunto grave. Não saberia escrever de maneira suave e imparcial sobre o episódio. Conheço minha natureza de despejar cobras e lagartos, de me indignar e de querer justiça a qualquer custo. A prudência felizmente me alcançou. Só agora depois do neto da minha mãe ser um homem do meu tamanho é que tive a coragem de escrever e atender a sua recomendação.. Não sei se atingi o objetivo. Só sei dizer do alívio sentido ao final do texto.

Agora as pessoas andam pelas ruas do bairro livres do incômodo dos inofensivos. Recebemos diariamente descargas de adrenalina indesejada através das buzinas enlouquecidas dos carros, do barulho ensurdecedor do escapamento adulterado das motocicletas. Esse horrível barulho é a trilha sonora do filme de terror estrelado por astros caídos soprando seu hálito frio e indiferente a tudo e a todos. A plateia permanece hipnotizada aplaudindo e vaiando o espetáculo, mas sem coragem ou vontade de mudar o enredo.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 01/12/2016
Reeditado em 04/12/2016
Código do texto: T5840203
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