Pule, não existe chão
“Você me perguntou sobre a vida, o porquê do medo, ansiosos quanto ao futuro, temerosos da dor, da falta, da perda. Preste atenção, a vida é como estar dentro de um avião, com o para quedas nas costas, você terá de se jogar, querendo ou não. Fecha os olhos, se atira. Depois disso, duas coisas irão acontecer, uma boa e outra ruim. Seu para quedas, por mais que tente, não irá abrir. O medo lhe envolverá. Em queda livre, apavorado, achará que é o fim. Entretanto, não há o quê temer, pois, na verdade,.... não existe chão.
A maioria só descobrirá ao fim de cada existência. Temerão durante toda a queda. Perguntarão depois, por que não deixei o corpo leve no ar, por que não brinquei de ser um anjo ou um pássaro?".
Foi tudo o que recordei ao acordar, o diálogo. Nenhuma imagem, nenhum rosto - talvez nem houvesse um. Aquelas palavras me fizeram companhia o dia todo. Nada esqueci, diferentemente do que ocorria em casos semelhantes. Curioso que, no próprio sonho, depois de ouvir as últimas palavras, pensei, vou filosofar até! Lembrei-me depois da minha amiga Natália, única filosofa com quem tive o prazer de conviver. Daria tudo para ouvir o que diria sobre o sonho, mas ela voltara para sua terra natal, o maranhão. Decidi, então, arriscar sozinho.
Comecei a lembrar de algumas reportagens que havia lido sobre perguntas feitas, em vários países, a pessoas muito idosas, algumas em estado terminal. A indagação comum a todas obteve respostas, em sua maioria, idênticas. Quando questionadas sobre o quê fariam diferente em suas vidas se nova chance lhes fosse dada, a quase totalidade respondeu, “teria me arriscado mais”.
Quantas pessoas você conhece que, neste exato momento, estão buscando, por todos os meios, seja nos relacionamentos ou no trabalho, a tal estabilidade? O sonho dourado das águas perenes e tranquilas. Querem sincronia, segurança, certezas. Bem, certeza neste nosso planetinha talvez seja a única coisa que transcenda a utopia. Entretanto, a busca por esta é sempre válida, pois nos faz caminhar, conforme brilhante explicação do diretor argentino Fernando Birri em resposta a um aluno que o questionou sobre a utilidade da utopia. Já aquela pode se transformar em uma fábrica de paranoias.
Na parábola evangélica dos talentos, Jesus conta que o único servidor condenado pelo senhor foi aquele a quem este confiou apenas um talento. Temeroso, enterrou o valor recebido para depois o restituir igualmente. Todos os outros servidores o multiplicaram. A condenação deveu-se à falta de coragem e fé que o impediu de se arriscar, e não à devolução de idêntica quantia.
Como o senhor da parábola, nossa consciência pode estar nos censurando agora mesmo e, se insistirmos em não soltar o corpo, se transformará em juíza absurdamente mais rigorosa.
Para prevenir,sinto que realmente é melhor acreditar, .... “não existe chão”.