VIDA CURTA

Volto de um passeio à casa de mamãe. Do banco do carona, percebo um burburinho qualquer que preenche hiatos de uma cançoneta chata que toca no rádio do carro. O motorista mal-humorado vira a rua quase em cima de um populacho - ainda ralo, espraiado na ruela – e diz um palavrão, ao mesmo tempo que aciona o pedal de freio do Fiat Uno, de modo que o veículo indócil cobre aquela gente de poeira. Um-sei-lá-quem reage com impropérios à atitude temerária do motorista e começa um bate-boca. Uma velha sai da casinha humilde e pede respeito pelo morto que velam lá dentro. Os contendentes calam-se.

Os do meio da rua dizem do morto como um homem de bem, devoto à família e ao trabalho. Não fora dado à esbórnia (enquanto vida tivera), seu único vício fora um cigarrinho de palha que pitava sempre depois do boião e de uma talagada de café. Nunca fora visto metido em confusões de qualquer espécie. Apenas ordeiro, justo e sistemático, tanto que se, por um acaso, apalavrasse um trato com alguém, cumpria-o à risca, mesmo que chovesse canivetes.

Despeço-me na rua do motorista nervosinho que me dera carona, uma vez que estou perto de casa e posso ir a pé até minha residência. Conheço alguns dos homens do povo que estão no meio do logradouro e ali fico a fazer-lhes companhia, mas como nada sei do morto, prefiro me abster de qualquer comentário; contento-me em ouvi-los. Falam do acidente que vitimou o jovem pai de família de apenas vinte e nove anos e enfatizam que o sujeito que dirigia a picape que batera na moto do finado, estava totalmente de porre. A vítima, dizem, já havia chegado ao Hospital Municipal Maria José Biancardi sem vida.

Entrementes, vejo que o espaço ganha cada vez mais pessoas e já tomam toda extensão da rua e também dos quintais das casas vizinhas. Tudo pobre e devidamente consternada como deve ser a gente que quer demonstrar alguma solidariedade para com a família enlutada. Alguns choram, outros ensaiam um abatimento que logo se dilui a uma piada contada por um gaito sempre presente nessas ocasiões. O barzinho Vai Quem Quer, em pleno funcionamento ao lado da casa do falecido, continua a abastecer de cachaça os bebedores de plantão, mas em respeito ao morto, os frequentadores daquele point etílico deixam de lado o jogo de bilhar e as cartas de baralho permanecem esquecidas sobre o balcão gordurento. Apenas bebem e conversam em voz baixa. Decido ver o defunto e saio ziguezagueando por entre a turba perplexa.

Entro pelo portão com certa cisma; é que não sou muito dado a velórios, posto não saber o que dizer, nem onde pôr as mãos. Na saleta, o morto me espera, hirto, arroxeado e de mãos postas. Duas velhas corocas batem nos beiços uma oração interminável, numa vã tentativa de levar a alma do finado a Deus. A primeira, mais alta e de olhar mais duro, interrompe de quando em quando a jaculatória de encomendação do defunto para chutar o cão magro que teima em deitar-se lhe aos pés. As outras três velhas respondem a ladainha com algum fastio. Vejo uma mesinha no canto da sala com duas garrafas e um pacote de bolachas. Vou direto ao café, mas antes que chegue ao meu destino, trombo com um pobre diabo que escandalizara as beatas por ter entrado no velório bebendo cachaça pelo gargalo e dizendo bestagens. Sai, bêbado nojento, grita uma mocinha, parenta do morto (eu suponho), ao mesmo tempo em que dirige um pedido de desculpa para mim. Alguém bate o pé no soalho. A porta que dá para a cozinha range com mais entrantes.

Percebo que não sei o nome do morto. Incrível, né? Pergunto a uma das velhas que acabara de rezar e ela prontamente satisfaz a minha curiosidade. Não sabe o nome verdadeiro, mas diz que atendia pela alcunha de Vida Curta. Sorrio levemente da absurda situação que me leva a pensar em escrever uma crônica. Divago sobre aquele esquisito apelido com um prazer quase mórbido e antes que me desate a gargalhar nas barbas do morto, numa hora tão imprópria, ponho-me porta afora.

Na rua novamente, driblo a multidão curiosa e vou me distanciando daquele velório. O bêbado expulso da casa do finado há pouco, puxa-me pelo braço e diz que Vida Curta era seu amigo. Dou-lhe um safanão, tentando evitá-lo, pois não suporto ninguém de porre, cuspindo no meu rosto enquanto fala. Ando ainda mais apressado, tentando evitar que o ébrio me siga, porém não evito suas palavras dizendo que Vida Curta vivera foi muito. Reflito naquelas palavras e sou forçado a concordar com pé-de-cana que, fazendo jus a um apelido tão singular, o defunto que jaz estirado naquele caixão de pobre até que tivera longevidade.

Olho para o poente e vejo o sol a perder os últimos de seus raios para a escuridão da noite que chega com a pressa de morte.

ELMANO ARAUJO
Enviado por ELMANO ARAUJO em 09/12/2016
Reeditado em 14/12/2016
Código do texto: T5848384
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