PAELLA MARINERA OU GARÇOM, SIRVA-ME UM DICIONÁRIO POR FAVOR

Uma célebre personalidade fora convidada para fazer uma conferência para um grupo de alcoólatras em fase de recuperação.

Depois de apresentado à seleta platéia, calma e estudadamente, dirige-lhes a palavra:

Senhoras e senhores. Pretendo iniciar minha palestra realizando singela experiência.

Tenho à minha esquerda uma pequena cuba com água. Pura e cristalina. E, à minha direita outra cuba contendo álcool, igualmente de especial pureza.

Neste pequeno invólucro trago um verme. Vou pegá-lo com esta pinça. Verifiquem como ele está cheio de vida, agitando-se e procurando escapar!

Agora observem! Vou deixá-lo cair na cuba de água. Notem o que acontece.

Todos os assistentes acompanham atentos a experiência. O verme mergulha na água, afunda e depois sobe à superfície debatendo-se para nela manter-se.

Vou novamente pegar esse verme com a pinça. E vou jogá-lo no outro recipiente. Peço a todos que prestem muita atenção ao que vai acontecer agora.

Tão logo ele é jogado no álcool todos constatam que ele afunda e deixa de fazer qualquer movimento permanecendo totalmente imóvel.

Está completamente morto, assevera a todos o conferencista. Qual é a conclusão que vocês podem tirar desta simples experiência, pergunta à platéia.

Depois de um longo e significativo silêncio um espectador do fundo do auditório levanta a mão.

Sim. Diga a todos o que deduziu.

O espectador levanta-se e, com firmeza, responde:

Quem bebe não tem vermes!

E todos os presentes o aplaudem.

Esta simples história dá bem idéia do quanto é difícil a comunicação entre os homens.

Porque a linguagem decididamente nunca foi um bom veículo de interação entre as pessoas, que tem distintas personalidades, formações, anseios e interesses.

Imagine-se com um aperfeiçoado tradutor pendurado ao pescoço procurando estabelecer diálogo com um aborígine selvagem. Muito pouco lhe adiantará entender o que ele diz. Ou conseguir argumentar no idioma que ele fala. Inapelavelmente V. acabará na panela. Ou grelhado, dependendo dos pendores alimentares do nativo.

Entretanto existem meios de comunicação mais eficazes. Um deles é a dor que constitui linguagem universal entre todos os seres vivos dotados de alguma sensibilidade.

Outro, de largo espectro, de significativa abrangência, que pode ser considerado o denominador comum entre todas as espécies é a comida. V. já reparou que ela é um dos mais eficazes e seguros elementos de integração existentes?

Porque não há ser vivo que não precise alimentar-se. E, a grande maioria não só tem estômago, mas vive em função dele.

É evidente que os paladares variam. Enquanto V. é vidrado numa picanha grelhada não há andorinha que se preze que resista a uma suculenta minhoca.

Com a comida certa, acredite, V. terá o mundo em suas mãos e poderá conquistar a todos desde um intratável jacaré até a sua apetitosa colega de escritório.

Mas há outro detalhe. V. já percebeu que existem certos pratos que são de agrado geral e universal? Que não respeitam fronteiras, que transcendem sexo, idade, credos ou religiões, cujo paladar tem sensibilizado raças e cores em todas as latitudes em todos os tempos?

Poderia enumerar bem mais de uma centena deles. Mas seria perder-me e a este precioso espaço. Prefiro deter-me, neste instante, em apenas um deles, cuja correta elaboração poderá ser altamente gratificante ao mais empedernido paladar. Refiro-me àquele que o título desta crônica já antecipou: a já universal paella espanhola.

Sua origem remonta há cerca de quinhentos anos e era o prato principal dos camponeses espanhóis que saiam para o trabalho levando arroz, algum azeite e uma panela sem cabo de fácil transporte. Na hora de elaborar a comida utilizavam-se dos ingredientes disponíveis como legumes ou carnes de caça, temperando tudo com os estames de uma flor abundante no campo que era o açafrão.

Foi somente mais tarde que surgiu a modalidade “marinera” que emprega apenas peixes e frutos do mar.

Permita-me acompanhá-lo na sua feitura.

Mas já na introdução sou forçado a ponderar que já tive oportunidade de experimentar mais de uma centena de paellas elaboradas por espanhóis considerados peritos, tão ciosos quanto fiéis aos ritos tradicionais.

E posso afiançar-lhes: quando chegamos aos detalhes nem eles se entendem. Talvez porque o prato, respeitada sua estrutura básica, comporte infinitas variações.

Bem por isso procurarei ater-me à minha receita, levemente estilizada, tanto no que tange à feitura quanto na utilização dos ingredientes, mas que agrada indistintamente a todos os paladares.

Adianto-lhe que será úmida. Jamais transija nesse tópico. Paella seca constitui contravenção penal.

Comece por cozinhar lula e polvo em panela de pressão usando apenas o necessário de água. Algo em torno de um quilo de cada, pois é normal que encolham.. Reserve o caldo, limpe os moluscos e corte-os em pedaços.

Agora ponha a panela ao fogo. Paellera se tiver. Algumas colheres de azeite, alho e depois cebola. Acrescente algo em torno de quatro xícaras de arroz de primeira linha. Pouco depois meio quilo de peixe de carne firme cortada em pedaços, igual quantidade de mexilhões e, outro tanto de camarões médios descascados.

Coloque a lula e o polvo já cozidos e cubra todo o conjunto com o caldo reservado. Adicione um copo de ervilhas frescas ou congeladas e três pimentões vermelhos sem sementes cortados em fatias.

Apele, agora, para sua criatividade. Outros frutos do mar, se disponíveis, serão benvindos: vieiras, vôngoles, carne de lagosta, pitus e tudo aquilo que sua imaginação ditar.

Tempere com sal e junte perto de cinco gramas de açafrão.

Neste ponto uma breve advertência: os pistilos dessa flor, mesmo em pequena quantidade, transferem a todo o conjunto uma característica cor amarelo ouro. Mas são insuportavelmente caros. Talvez por isso já tenha visto espanhol legítimo empregar uma minúscula porção de açafrão e completá-la com corante alimentar amarelo. E, outros, em maior número, descendentes dos primeiros, utilizar exclusivamente o “açafrão nacional”, que nada mais é que um pó elaborado com raiz de cúrcuma.

Afaste-se, agora, do fogão e deixe a iguaria sozinha atingir o ponto correto. Aproveite esse interregno para saltear numa frigideira à parte alguns camarões graúdos inteiros e algumas caudas de lagosta previamente aferventadas em água e sal.

Quando o arroz estiver cozido tudo estará. Use toda sua criatividade e complete a decoração com essas últimas peças.

O visual, perceba, é apaixonante. A mescla de sabores que se seguirá, incomparável. E, o que também é muito importante: a não ser o lugar que cada convidado deverá tomar à mesa nada mais V. precisará explicar.

P.S. Em suas andanças pelo mundo, quando for a um restaurante, não perca tempo pedindo um dicionário ao garçom.

Diga simplesmente paella. Você poderá pedir, suplicar, gritar, implorar, balbuciar, urrar ou até grunhir se for do seu feitio. Acredite, todos o entenderão perfeitamente.

Porque paella se pronuncia paella em todos os idiomas em qualquer lugar do mundo.