Robert soube da morte de Ramayana Habran, por informação de Ravenala, que, ao noticiar o fato, fez-lhe um convite.
— Quero que vás comigo a um sarau!
— Sarau?
— Uma tertúlia. Tenho um projeto literário e gostaria que você o examinasse.
—Bem, então este é o sarau?
— Não exatamente. O sarau na verdade, acontecerá na chácara de Alice em Petrópolis. Ela vai lançar um livro, durante o evento.
— Alice? Nossa ex-professora do Marista?
— Sim, ela mesma!
– Menina, veja para onde está me levando...
— Por quê?
— Ora, eu como livros, me alimento de livro! Fico horas na biblioteca, só olhando livros. Livros lidos, marcados, rabiscados com anotações, e data da leitura. Muitos deles com releitura e data. Todo livro que leio, torna-se livro de consultas. Fico olhando, e às vezes rio. No ano de mil novecentos e pedrinhas... que eu fazia na vida, quando li este livro? Abro o arquivo das lembranças para ler os registros. E descubro cada segredo, que eu nem mais lembrava.
— Então, você é o verme gordo que roeu os sete livros do Velho Testamento?
(Riu).
— Não sou nenhum Lutero!
— Brincadeira.
— Eu sei.
A semana passa devagar, escorrem os dias numa ampulheta do tamanho do mundo. Horas, minutos e segundos, escorregam lentamente. O tempo caminha preguiçoso. No relógio da vida, a contagem é regressiva. 
— Estás pronta? Telefona ele para Ravenala.
— É amanhã, menino. Você parece que nasceu de sete meses!
Finalmente, quando Robert tocou o interfone, Ravenala, já o esperava. Surpreso, viu o livro de Alice na mão de Ravenala.
— Que privilégio é este?
— Amizade, meu caro! Amizade. Alice goza de minha amizade e conhece meu projeto. Sabe até que você me acompanhará na empreitada do livro que devemos produzir juntos. Isto é, se aceitares minha proposta.
— Como não! Como recusar um convite para fazer aquilo que mais quero?
— Alice ofereceu a chácara. O lugar é sossegado e muito bom.
Sentou-se ao volante. Estendeu a mão e destravou a porta do carona. ‘Entre!’
Ravenala esperava por gesto mais delicado. Mas não estranhou tanto. Acostumada que era de ver seu Jeremias agir do mesmo jeito com Dulcineia. Nunca vira o pai fazer um gesto de carinho com a mãe dela. Nem a mãe ser carinhosa com. Silenciosos, sem diálogo, conviviam como se cada um fosse uma pedra. Mal davam bom-dia. Na maioria das vezes se esqueciam desse cumprimento matinal.
Ligou a setas para a esquerda. Engrenou marcha e pisou lentamente no acelerador. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro. Parecia uma tela pintada pelas mãos do antigo dono do Caraguá. Não necessariamente, o dono. A filha quem pintava telas e tocava piano, e uma arte completava a outra.  Moça prendada, mas rebelde e arredia, não deixou nenhuma obra para a posteridade. Nem filhos ela deixou. Petulante, a filha do Português desafiava até o pai, e a ele não obedecia. 
Outrora, o sítio de Alice pertencera ao Almada, grande comerciante e amigo do governador. O velho comprara o sítio de um ilustre representante do poder político. Tudo estava pronto. A casinha branca no pé da serra, recebia a visita dos mais antigos donos: a família imperial. Ali, a princesa Mariana se banhava, nadando lado a lado com lambaris. A filha doJosé fazia o mesmo,  anos depois, quando seu pai se tornara dono da propriedade. Sentia-se uma princesa. Nenhum rapaz da cidade tinha dote para casar-se com ela. Morreu solteira, tocando teclado, pois não tinha mais dinheiro para comprar piano.
***

Adalberto Lima - Fragmento de Estrada sem fim...