O HOMEM QUE CONVERSAVA COM DEUS

Decidi que iria na missa da virada. Eu poderia não ir, agarrado na mesma vértebra da desculpa do natal, ou seja, a de que não iria sem minha esposa que, enrolada na loja em que trabalhava, dava o sangue pelo lucro da patroa na véspera de ano novo. Mas fui. Cheguei um tantinho atrasado como sempre; os fiéis já grasnavam o cântico de perdão quando entrei na igreja e me acomodei no último banco.

Como é de meu costume, espichei os olhos pela assembleia contrita (composta em sua maioria de velhas beatas) à procura dos jovens com os quais tenho mais afinidade. A maioria deles, todavia, estava nos primeiros bancos, já que a celebração era de sua responsabilidade. Por haver me atrasado, tive de permanecer entre as velhotas, como algum descontentamento, é fato.

Aos poucos, fui desnudando os tipos que me cercavam por todos os lados: a minha frente duas velhas gêmeas – deduzi por serem idênticas – eram duas absolutamente estrídulas ao cantar. Tive-as por antipáticas. No meu lado esquerdo, um casal composto de um velho de barbas longas e brancas e da esposa de cara lastimosa; na direita, uma mulher de quarenta anos com dois meninos palradores que, de quando em quando, eram raiados pelas velhas gêmeas à nossa frente que faziam um gesto de silêncio com os dedos longos em riste. Eu tinha vontade de rir das corocas que tentavam em vão calar duas crianças levadas.

Quando fui dar meus míseros vinte e cinco centavos que trazia no bolso em ofertório ao Senhor do Exércitos, fui destituído do espaço do meio do banco em prol do velho de barba branca e sua esposa, de modo que tive que me contentar com o ladinho do assento que mal cabia a parte da bunda. Não gostei à princípio, mas percebi que havia ganhado um novo ângulo de observação das nuances do comportamento humano, o que deveras apraz a um humanista como eu. Nadica do que eu vira mostrou-se especial até atentar no homem da cara manchada que jazia no último banco, quase à porta, tendo ao lado uma mulher pálida e escaveirada que eu jurei ser anoréxica.

O fiel manchado logo disse ao que veio. Fez uma carícia na mulher e, sem ver nem pra quê, deu um cascudo na magrela ao seu lado e o som crocre foi tão forte que chamou atenção de todos à sua volta. Um senhor tanto compadeceu-se das lágrimas que se encachoeiravam pela cara murcha da mulher agredida que o repreendeu com duras palavras, das quais não pude ouvir o teor. O manchado – desculpem por não achar na cachola outro adjetivo mais apropriado – fez uma leve cara de zangado, mas outro fato veio distraí-lo do admoestador: o celular dele tocou com som de risada de criança. Eu, inocente, vislumbrei (com minha imaginação fértil) a mão grande do homem tirando não o telefone móvel, mas uma miniatura de criança toda ela plena de sorriso.

Mas não! O homem muito nervoso sacou do bolso mesmo foi um celular daqueles bem vagabundos de uns cem reais mais ou menos e, com dedos agilíssimos recusou a ligação, devolvendo o aparelho ao bolso de onde tirara. Novamente o aparelho sorriu, ou melhor, tocou e homem desta vez atendeu para o horror dos fiéis que o cercavam. Sua voz soava muito alta a ponto de o padre interromper o sermão e ficar a ouvi-lo. Uma das gêmeas veio ter com ele:

- Senhor, desligue o celular! – Gritou-lhe quase ao pé do ouvido, porém o cara fez-se de desentendido.

Outra dona veio lá da frente, com passadas largas e decididas. Ao acercar-se do sacrílego da mancha, brandiu o guarda-chuva que trazia na mão bem perto do rosto homem, como se fosse uma espada medieval

- Ei, o senhor sabia que é pecado falar ao telefone dentro da igreja? –

O homem olhou-a, fez-se de desentendido e continuou a falar com seu interlocutor Deus-sabe-quem, tratando de gado, de viagem, de alqueires e hectares como se estivesse na sala de estar de sua casa. Pelo menos, era isso que bodejava.

Em poucos minutos no fundo da igreja estava uma verdadeira balbúrdia, pois todos de pé, revoltados, dispunham-se a crucificar o sujeito teimoso que conversava em voz altíssona durante a pregação do padre Geraldo. Alguns fieis foram deixando o recinto, outros, porém não arredavam pé, com a intenção única de expulsar o infiel capaz de causar tão sério transtorno na missa de despedida de 2016. Pode um negócio desses?

Para acabar com a farra do sujeito manchado, o padre largou o púlpito, desceu do altar segurando a batina surrada e pôs-se pelo corredor com aquela indolência mineira. O homem continuava a falar no aparelho com a mesma animação de antes quando o padre o interpelou:

- Uai, meu irmão... – O padre ia apalpando as primeiras sílabas, mas o homem descolou o aparelho do ouvido para pô-lo sobre o peito, e cortar, como um caneludo zagueiro de peladas, o discurso recém-iniciado do pároco.

- Ô padre, não me interrompa. Não vê que eu tô proseando com Deus?!

O vigário freou as falas um sorriso sem graça, fez um sinal de que o homem do celular tinha um parafuso a menos e pegou-se a cantar o santo, convocando com gestos toda assembleia a gorjear mais alto o “dizem todos os anjos” como que, para isolar o homem de cara manchada que conversava com Deus.

ELMANO ARAUJO
Enviado por ELMANO ARAUJO em 02/01/2017
Reeditado em 15/02/2017
Código do texto: T5870207
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