O CASO NAVES

Araguari, interior de Minas Gerais, ano de 1937. Com a instauração do regime ditatorial de Getúlio Vargas, vive-se um grande caos no país, principalmente nas áreas da economia e dos direitos humanos.

Na economia, os setores agrícolas eram os que mais sofriam com a constante queda dos preços. Em meio a esse turbilhão econômico e social reinante no chamado Estado Novo, está o comerciante de cereais Benedito Pereira Caetano (1905 - 1967), um rapaz trapalhão e extremamente ambicioso e sócio com seus primos, os irmãos Sebastião José Naves (1902 - 1964) e Joaquim Rosa Naves (1907 - 1948), com quem havia comprado um caminhão em sociedade, sendo ambos também comerciantes de cereais.

Benedito comprara com a ajuda de seu pai uma enorme quantia de arroz para vender durante uma possível alta nos preços. Mas com os preços em queda constante Benedito viu-se obrigado a vender sua safra em expressiva perda, contraindo ainda mais dívidas e assim sobrando-lhe somente uma última - mas vultosa - importância em dinheiro: cerca de 90 contos de réis (aproximadamente 270 mil reais nos padrões de hoje) resultantes da venda de sua última leva de arroz. A quantia embora expressiva não cobria todas as suas dívidas que à época totalizavam cerca de 136 contos de réis. Ele toma uma decisão inusitada: na madrugada de 29 para 30 de novembro do mesmo ano ele decide sair às pressas da cidade, sem comunicar nada a ninguém, levando consigo seus últimos 90 contos. Sabendo do fato, os irmãos Naves decidem comunicar o fato à polícia, que imediatamente inicia as investigações.

Poucos dias depois, o delegado responsável pelo caso, o civil, acaba sendo substituído pelo tenente militar Francisco Vieira dos Santos, o "Chico Vieira" (1897 - 1948), vindo de Belo Horizonte. Este, temido como um homem truculento e adepto de torturas, seria o maior vilão e causador do grande erro judiciário desta história.

A prisão da família Naves

Passados alguns dias de sua nomeação como delegado interino de Araguari, Chico Vieira formula a hipótese de que os Naves poderiam ter assassinado Benedito a fim de ficar com seus 90 contos. O tenente manda prender os irmãos Sebastião e Joaquim para interrogá-los. A partir de então começa o sofrimento dos Naves.

Durante meses inteiros, Chico Vieira e seus comandados submetem os irmãos Naves a tortura para que confessem que haviam matado Benedito e escondido o dinheiro para resgatá-lo depois. Além das torturas diárias eles eram alojados em celas subterrâneas imundas e úmidas, privados de água, comida, visitas e até mesmo da luz do sol. Confinados ao escuro por um crime que nem sequer tinha ocorrido, por um homem louco ou cruel, que faria de tudo para "espremer sangue de um nabo" para assim obter uma prova formal - ainda que falsa - de que Sebastião e Joaquim eram ladrões e assassinos. Não bastando sua sanha para com estes por meio das torturas, o militar ordena que Joaquim e Sebastião sejam levados a um campo aberto, onde são amarrados a árvores, tendo seus corpos untados com mel para serem atacados por abelhas e formigas, ouvindo tiros e ameaças constantes de morte, a fim de esgotar as forças físicas e morais de ambos.

Mesmo tendo conseguido forçar os irmãos a assinar uma "confissão" formal do crime ele ordena que as esposas, filhos e até mesmo a velha mãe deles, Ana Rosa Naves, chamada afetivamente de "Don'Ana" (1866 - 1963) pelos conhecidos da cidade, sejam presos e trazidos para suas celas. As esposas e a genitora dos Naves também sofrem torturas diversas, sexuais até, nas mãos do perverso "Chico Vieira" e seus soldados. Nestes longos e cruéis meses a velhinha sempre pediu que os filhos nunca confessassem o crime que não cometeram, houvesse o que houvesse. Vendo que a velhinha não se curvaria e dela não extrairia nenhuma informação que comprometesse os supostos "culpados", o tenente Vieira colocou-a sob liberdade vigiada. Ela procura pelo advogado João Alamy Filho (1908 - 1993), que de início acreditava na suposição do tenente na qual os Naves aparecem como assassinos e por essa razão recusava-se a exercer sua defesa. Mas, ao ver o estado físico de "Don'Ana", resultado das torturas e violências que ela sofrera, João passa de acusador a defensor em tempo recorde.

Julgamentos

Mesmo sob as frequentes ameaças de "Chico Vieira", "Don'Ana" e João Alamy Filho exerceram com coragem e perseverança a defesa dos Naves. Estes tiveram de passar por dois julgamentos, sempre tendo por parte da acusação o tenente Vieira, disposto a intimidá-los até mesmo dentro do tribunal. O advogado sempre recorreu com recursos diversos para provar a inocência dos irmãos e o terrível equívoco que o Judiciário estava cometendo sob a influência de Vieira.

No primeiro julgamento, ocorrido em 1938, começa a surgir a verdade, através dos depoimentos de outros presos que também testemunhavam as atrocidades sofridas pelos Naves. Neste, o júri votou - por seis votos favoráveis e um contra - pela absolvição de Sebastião e Joaquim. Realizou-se então no mesmo ano um novo julgamento no qual confirmou-se o voto, por seis a um, da inocência dos réus. No entanto, eles não poderiam aproveitar sua tão sonhada liberdade.

O Tribunal de Justiça, mediante a ausência de soberania do júri no tribunal pelo regime ditatorial da Constituição de 1937, resolve alterar o resultado do veredicto, onde, por seis votos a favor da condenação e um contra, os irmãos são condenados a 25 anos e meio de prisão (que posteriormente passou por revisão penal e assim teve a pena reduzida para 16 anos). Após 8 anos e 3 meses de prisão, os Naves, mediante comportamento prisional exemplar, são finalmente colocados em liberdade condicional. Em 22 de maio de 1948 morre em Belo Horizonte o tenente Francisco Vieira dos Santos, o "Chico Vieira", de derrame cerebral. Três meses depois, a 28 de agosto, morre Joaquim Naves no asilo em que vivia para se tratar de uma longa doença que contraíra por causa das torturas, que debilitaram muito sua saúde. Para seu irmão sobrevivente começava uma nova luta: a da definitiva prova de sua inocência.

A verdade vem à tona

Em 24 de julho de 1952, Benedito reapareceu vivo em Nova Ponte, na fazenda de seu pai, João Pereira da Silva. Sebastião foi avisado pelo primo Fernando Naves, por telegrama, que precisou ser lido para ele por seu filho, pois ele era analfabeto.

Sebastião procurou o juiz da cidade, pois precisava de autorização para sair de Araguari, mas o juiz aconselhou-o a esquecer o assunto, já que não devia mais nada à Justiça. Mas Sebastião queria provar sua inocência. Procurou o repórter Felício de Lucca Neto, que convenceu o delegado da cidade, capitão Georgino Jorge de Souza, a realizar a diligência.

O delegado obteve a autorização do juiz e Felício contratou um motorista de táxi, Sebastião Machado, para levá-lo a Nova Ponte com Sebastião Naves e o cabo José Marques. Um lugar ficou vazio, no carro, reservado para Benedito.

Chegaram à noite e acordaram João, que confirmou que o filho estava na cidade, dormindo em casa de um cunhado. Sebastião invadiu o quarto, com o cabo. Benedito implorou para que Sebastião não o matasse, mas a reação dele foi outra: abraçou o primo e disse: "Graças a Deus você está vivo! Vamos para Araguari, para todos verem que meu irmão e eu somos inocentes!".[1]

A população queria linchar Benedito. Para proteger sua vida, o delegado o prendeu.

Benedito declarou que, na madrugada de 29 de novembro de 1937, foi roubado por três assaltantes que levaram todo o dinheiro da venda do arroz. Disse que sumiu de Araguari porque ficou com vergonha de não ter como pagar sua dívida. Pegou o trem das cinco da manhã e foi para Anápolis. Depois, para diversas outras cidades.

Disse que não sabia de nada, do ocorrido naqueles anos todos. Não há nada que comprove se sabia ou não, mas o fato é que tinha mudado de nome, o que parece indicar ter sabido dos fatos. Passou a se chamar José Alves Gomes, conhecido como José Goiano.

Benedito disse que tinha voltado para quitar suas dívidas. Toda a sua família, menos ele, morreu em um acidente com o avião que os levava para Araguari para prestarem depoimento.

Em meados de 1953, os irmãos Naves foram inocentados oficialmente de toda e qualquer acusação de crime.

Ainda restava uma última etapa do processo: a indenização legal da família.

O desfecho

Por sete anos inteiros, Sebastião e seu advogado João Alamy Filho lutaram na justiça até 1960, quando conseguiram processar o Estado e assim garantir a indenização devida à sua família e aos descendentes legais de seu irmão. Realizada esta parte final de sua trajetória, Sebastião viveu com tranquilidade até sua morte em setembro de 1964. Morria sua mãe "Don'Ana" dois anos depois e seu ilustre defensor João Alamy Filho em 1993, mas não sem antes escrever nos anos 60 o livro O Caso dos Irmãos Naves, no qual narra toda aquela história obscura vivenciada por seus clientes.

Vikipédia- Enciclopédia Livre
Enviado por Miguel Toledo em 07/01/2017
Código do texto: T5875076
Classificação de conteúdo: seguro