Salada de Janeiro

Salada de Janeiro





Teria dito o poeta Paul Valéry que o futuro não é mais o que costumava ser. Nunca duvidei da fina ironia que encimava as mentes do século XIX. Jornais de hoje continuam servindo a escravidão energética em detrimento da soberania energética. No derredor os dramatis personae lúcidos afirmam estarmos na lama política e na pobreza econômica ao passo que os temerários se banham num ufanismo metonímico.

"Mas todos os humanos pertencem à terra, como a alegria pertence aos humanos. Na tristeza não pode ficar um homem como que enterrado vivo. O sol existe e não é monstruoso".

Decerto não é. Veio dele a informação de que em janeiro o círculo se completa, o noviço se torna mestre, alfa encontra ômega, a soberba joga seus trajes no lixo e veste os mantos da sabedoria e humildade, a ira se desdobra em leveza, a luz desbanca a escuridão. Hora de jogar um perfume no ar. A gente sente esse tipo de coisa, há muita urdidura em andamento, texturas que, suspira-se, serão vocabulário padrão nas gerações por vir.

Num janeiro variável, interdimensional, inesperado, sem barreiras, as rádios contratam orquestras grandes e a qualquer hora do dia pode-se ouvir "Marceneiro Paulo", "Rapaz de Bem”, “Azul Contente”, Robson Miguel brinca com Nhop, Hermeto permanece acordeonista da Rádio Jornal do Comércio, Sting toca alaúde, Jake Shimabukuro realiza uma das mais belas "Eleanor Rigby", Biréli Lagrène seria uma boa pedida, idem para Chet Atkins executando Mr. Sandman, e nos intervalos, uma voz bem bonita diz assim:

Você não tem uma alma – você É a sua alma.

"Acontecimentos trágicos são animais que, por vezes, nos comem metade da alegria, mas em cada manhã um corpo é inaugurado. Um único sono pode ser um século, uma noite serve para mudança de hábitos e língua,
e o sono pode ainda ter força pra te mudar a memória: adormece, pois".

Em janeiro cata-se conchas, os pés ficam cheios de areia, passarinhos vem na janela e conversam conosco, nos aconselham, contam lorotas e explicam que nossa única responsabilidade em relação ao resto do mundo é nos mantermos livres e separados dele.

Sim, é um parto difícil, nada se modifica na obrigação, urge o perfume no ar, Gaia transforma e materializa, que seja agora, enquanto nossas peles são aveludadas pelo frescor de pisar no autêntico início de mais uma jornada de bem-aventurança.

“Deus não é uma ilha. Com cuidados femininos, Ele irá remendar o teu tecido amoroso".


(Imagem: Butterflies and moths observed during the Austrian Novara Expedition - 1857-59)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 12/01/2017
Reeditado em 12/06/2020
Código do texto: T5880035
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